Muitas pessoas não devem ter conhecimento do avanço que significou a realização, em 2010, da primeira Conferência Nacional de Educação (Conae). Segundo o site do próprio Ministério da Educação, a Conferência “é um espaço democrático aberto pelo Poder Público para que todos possam participar do desenvolvimento da Educação Nacional”. E assim aconteceu. O evento reuniu centenas de delegados, oriundos de todas as partes do Brasil, que foram eleitos em conferências nos âmbitos municipal, regional e estadual. Esses delegados, legitimamente eleitos, discutiram os rumos que deveriam ser dados à educação no país, da educação infantil à pós-graduação.
Em consonância com as lutas históricas em âmbito mundial pelos direitos das pessoas com deficiência, os participantes da Conae propuseram educação inclusiva ampla e irrestrita. O texto da Conae previa:
Universalizar para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, na rede regular de ensino.
Em respeito ao que foi deliberado na Conae (realizada, lembremos, com dinheiro público), o Ministério da Educação incorporou o anseio da sociedade por inclusão escolar em um texto importantíssimo, que foi enviado em 2010 para apreciação no Congresso Nacional. O texto é nada menos que o Plano Nacional de Educação (PNE), um conjunto de metas (e suas respectivas estratégias) que diz onde este país quer estar em relação à educação dentro de dez anos.
Agora, perguntamos: onde queremos estar em dez anos? Continuaremos, em 2023, segregando seres humanos entre 4 e 17 anos em classes e escolas especiais? Ainda acharemos isso tolerável? Ou essa prática, daqui dez anos, vai ser vista como algo do passado, repugnante e assustador?
Hoje, achamos odiosa a ideia de separar ambientes para negros e brancos. Mas isso já foi natural um dia. O Apartheid foi algo instituído e vivido como uma condição contra a qual nada se podia fazer. O Holocausto surgiu da ideia de que uma diferença (a de ser judeu) justificava crueldade e o extermínio de um povo. As mulheres, por sua vez, sofreram abusos e repressões de toda ordem – e ainda sofrem. Aqui no Brasil, no século passado (ontem, na história da humanidade), elas não podiam estudar tampouco votar.
Hoje, consideramos tais práticas – e as ideias que estapafurdiamente as sustentavam – algo ignominioso. E o são. É uma questão de tempo para que a segregação escolar de pessoas com deficiência seja restrita ao passado, e seja classificada também como algo desumano e inconcebível. Estamos falando de uma simples questão de tempo.
E não se trata de algo fruto de sexto sentido, simples desejo-sonho-utopia ou torcida de tolos “radicais”. Estamos falando de fatos: em 1998, 87% das matrículas deste público-alvo eram em escolas e classes especiais. Em 2012, temos 68,9% das matrículas em escolas regulares (Inep/MEC). A concepção social e teórica sobre a questão vem sendo revista, a escola tem passando por profundas transformações e a sociedade já pode testemunhar o resultado dessa mudança de paradigma. Deixar a visão assistencialista e baseada na incapacidade do sujeito e passar a encarar o assunto como uma questão de direito humano e de respeito à diferença é o caminho que tem levado o Brasil a oferecer condições de igualdade de oportunidade e vida digna a uma parcela da população historicamente discriminada.
As intenções da Federação Nacional das APAEs (Fenapaes) de pleitear a continuidade das escolas especiais para seus assistidos faz retroceder mais de uma década de avanços que a educação brasileira conquistou cumprindo a Constituição Federal de 1988. Nossa Lei Maior preceitua uma educação para todos e todas, sem segregação e discriminação, e garante a alunos da educação especial acesso, permanência e participação segundo suas capacidades, em salas de aula comuns das escolas de ensino regular. A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), que foi integralmente incorporada a nossa Constituição Federal em 2009, também garante a esses alunos a escolarização em ambientes educacionais inclusivos.
Portanto, o pleito de brasileiros conscientes e isentos de qualquer outro objetivo que não os avanços e o reconhecimento dos benefícios de uma educação inclusiva é que se assegure o direito de os alunos da educação especial serem escolarizados com os demais colegas, na escola comum.
É preciso lembrar que as escolas especiais não deixaram nenhum legado importante para os alunos nelas matriculados, especialmente aqueles que têm deficiência intelectual, pois os alunos egressos dessas escolas não chegaram a níveis de ensino mais avançados – diferentemente dos alunos que frequentam e frequentaram o ensino comum.
Os pais de alunos mais jovens que têm deficiência e dos demais, que são o público-alvo da educação especial, já compreenderam isso e reconhecem os prejuízos causados por escolas especiais a seus filhos. Os pais de alunos mais velhos, especialmente os das APAEs, devem estar começando a ter dimensão disso e a reconhecer o que significou para seus filhos os anos de segregação em escolas especiais e nas chamadas oficinas abrigadas. As escolas especiais e as oficinas abrigadas produzem e produziram pessoas sem condições de inclusão social por falta de instrução e preparo para o trabalho, ficando à mercê da assistência e da benemerência social na vida adulta improdutiva e na velhice.
As APAEs e demais instituições que são contrárias à inclusão, especialmente à inclusão escolar, deveriam celebrar a inclusão e continuar seus trabalhos em outras áreas direcionadas: à preservação dos direitos de seus assistidos, apoiando os pais para perceberem em seus filhos as suas possibilidades e garantir-lhes o direito de terem essas potencialidades reconhecidas nos ambientes escolares comuns e na vida social e laboral; e ao atendimento especializado em medicina, fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia , assistência social e outros, no âmbito dos serviços terapêuticos, onde já adquiriram expertises.
Lembramos que as APAES e outras instituições contrárias à inclusão escolar não vão ser fechadas – como muitos de seus diretores e presidentes apregoam a todos – caso deixem de oferecer escolarização em escolas especiais. Poderão, ao contrário, manterem-se dignamente ativas, dedicando-se mais a um trabalho que já oferecem e que lhes conferirá o valor e a importância institucional que precisam urgentemente recuperar. Espalhar a mentira de que o governo quer acabar com as APAES devido à Meta 4 do Plano Nacional de Educação só compromete a imagem da instituição.
Seguimos firmes na luta pelo direito incondicional ao acesso, à permanência e ao ensino de qualidade, em todos os níveis e em todas as modalidades de ensino. Educação Inclusiva é um direito humano. E direitos humanos não se negociam.
*Maria Teresa Eglér Mantoan é professora doutora da Faculdade de Educação da Unicamp, onde coordena o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferenças (Leped); Meire Cavalcante é mestre em educação, membro do Leped e atua na OSCIP Mais Diferenças. Ambas são coordenadoras da Região Sudeste do Fórum Nacional de Educação Inclusiva.
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