Brejeira, cheia de vida, pimentinha…
Guerreira, alto astral, perseverante…
Sagaz, imbatível, engraçada…
Tantos adjetivos cabiam dentro daquele corpo e daquela mente iluminada. Ela parecia que tinha uma tocha dentro de si! A evidência disso era o cabelo vermelho! O próprio Foguinho!
Mas isso só constatei depois de conhecê-la pessoalmente.
Não me lembro direito como nem quando nos achamos. Acho que começamos a trocar emails em 2007, mas nos aproximamos mais em 2008 quando eu trabalhava na CORDE, área da deficiência do governo federal, e ela fazia parte da Aparu, associação de Uberlândia. Entrei de licença para o tratamento de um câncer. Comecei a idealizar a Inclusive e a Ana Paula, junto com a Marta Gil, foram minhas grandes incentivadoras e conselheiras. Foram vários telefonemas e trocas de email que fizeram o tratamento passar mais rápido e a Inclusive se materializar.
Ana Paula não desistia. Nada era impossível pra ela. Queria mudar o mundo e não aceitava um não como resposta. Ela foi uma das lideranças da sociedade civil que mais trabalhou para a ratificação da Convenção. Quando o processo estava parado no Congresso, no começo de 2008, ela ficava nos instigando: “Precisamos fazer alguma coisa. O Congresso tem que ratificar a Convenção”. Sabia do que estava falando. Junto com Flavia Vital, organizou o livro A Convenção Comentada http://www.inclusive.org.br/?p=362 , editado pela CORDE, com comentários de 33 especialistas sobre os artigos da Convenção.
O livro virou nosso panfleto no convencimento dos parlamentares no Congresso sobre a necessidade de ratificarmos aquele que foi o primeiro tratado de direitos humanos do século XXI, com equivalência constitucional. Para isso precisaríamos de dois terços dos votos da Câmara e do Senado em duas votações. Parecia impossível conseguir aquilo em um ano em que o Congresso ficou praticamente paralisado por CPIs escandalosas.
Não para Ana Paula. Começou a colocar fogo no pessoal. Parece que a estou vendo e ouvindo sua vozinha fina: “E a Convenção, e a Convenção? Gente, a Convenção vai começar a vigorar e o Brasil, nada? Precisamos nos mexer.” E bolamos o plano, junto com o movimento Assino Inclusão, liderado pela Lais Figueredo Lopes, à época conselheira pela OAB no Conade. Claudia Grabois, Flavia Vital e outros tantos do CVI e outras organizações. Fomos colhendo assinaturas de apoio. Lembro que ela foi dar uma aula em Caldas Novas, GO, e fez todo mundo assinar o manifesto pela ratificação imobilizada, ou com a boca tapada, olhos vendados…
Encaminhamos aos parlamentares uma nota de pesar pela não votação da Convenção, convocamos todo o movimento para encher a caixa postal dos deputados e senadores até conseguirmos o que queríamos. Aproveitamos a data da entrada em vigor, que s seria o Dia “D” da Deficiência e fizemos uma contagem regressiva na Inclusive. “Faltam tantos dias pra Convenção entrar em vigor. E o Brasil? Eu publicava a lista de países que haviam ratificado a Convenção e a cada novo país que aderia.
A Reatech em São Paulo foi usada para também colher assinaturas favoráveis à ratificação. No dia D, 3 de maio, mobilizamos várias partes do Brasil. Ana Paula mandou fazer camisetas com o “logo”que criei – Convenção, Ratifica Já! , com o símbolo da acessibilidade e foi pras ruas com o pessoal da Aparu colher assinaturas..
Essa mobilização toda, que partiu de um punhado de pessoas, contribuiu para que as pressões que também vinham sido feitas há tempos de dentro do governo pela Izabel Maior na CORDE e o Alexandre Baroni e conselheiros do CONADE fizessem efeito. Daí para as votações serem marcadas e conseguirmos o que queríamos, foi um pulo.
Suas batalhas foram inúmeras.
Foi dela a iniciativa de conseguir para mim uma audiência com o então Secretário da Comunicação Social Franklin Martins, para falar sobre Publicidade Inclusiva. Não se cansava de insistir na necessidade de uma campanha para promoção da Convenção. Até chegamos a encaminhar uma, junto com o Fabio Airon.
Impetrou junto com Claudia Grabois, na época na Federação de síndrome de Down, ADIN, Ação Direta de Inconstitucionalidade, contra o Ministério das Comunicações em favor da audiodescrição na TV, que acabou saindo do papel.
Com tanta competência, foi chamada para trabalhar na recém criada Secretaria Nacional e lá pode seguir o seu caminho na batalha pelos direitos das pessoas com deficiência. Deixou Uberlândia por Brasília. No começo não gostou muito. Reclamava de morar em hotel, da falta da família e de amigos. Mas dava um jeito em tudo. Como não conhecia nenhuma oficina de cadeira de rodas em Brasilia, convocou o faz-tudo do hotel pra adaptar sua nova cadeira e ficar do jeito dela. Isso ela me contou numa de nossas conversas por Skype, sempre nos domingos de manhã, porque durante a semana ela não parava. Inventou de fazer uma especialização numa faculdade perto do hotel em que ia sozinha em sua cadeira.
Foi só nessa época que nos conhecemos ao vivo! Fomos convidadas as duas para fazermos palestras num evento sobre a Convenção no Senado. Foi uma emoção muito forte vê-la pela primera vez. Me agachei ao seu lado e ficamos papeando como amigas de infância. Comemos camarões no restaurante dos senadores. Nossa sintonia era super natural, a conversa fluía livre. Depois nos encontramos mais uma vez na ONU, em Nova York, na Conferência dos Estados Partes da Convenção em setembro do ano passado. Ela era pura felicidade. Representou nosso país atrás da plaquinha com o nome do Brasil na plenária e fez palestra num evento paralelo falando sobre os avanços na implementação da Convenção.
Queria aproveitar a vinda a Nova York para comprar uma cadeira nova mais versátil e uma cama que a possibilitasse que saísse sozinha e sentasse na cadeira. A independência para a Ana Paula era muito importante. Mas a cama era muito cara. Tão cara que a Ana Paula perguntou ao fabricante: “A cama já vem com namorado?”
Fomos juntas ver Mamma Mia na Broadway. Ela se deliciou com o musical. Jantamos na casa da Rosangela Berman-Bieler, pioneira do Movimento de Vida Independente, junto com companheiros queridos de luta, Lais de Fiqueiredo Lopes, Joelson Dias, Regina Atalla. Lá, entre amigos, ela recebeu críticas duras à atuação da Secretaria. Às vezes não é fácil deixar de ser sociedade civil para passar para o lado o governo. Perguntei depois se ela não tinha ficado chateada. A resposta: “Claro que não! Tem mais é que reclamar mesmo”! Ana Paula não mudou nada…
Minha amiga vai deixar saudades e um buraco no nosso movimento já tão debilitado. Hoje mesmo, antes de saber do acontecido, pensei nela. Ia pedir pra ela me mandar o DVD da História do Movimento das Pessoas com Deficiência lançado pela antiga CORDE, na gestão da Izabel Maior, para eu dar a duas professoras de estudos sobre deficiência que conheci aqui em Nova York. Não sabia que já estava internada.
Vou lembrar dela como a pessoa mais determinada e com amor à vida que conheci. E que não se contentava com pouco. Os vôos eram ambiciosos! Quer ver? Me confidenciou que gostaria de ser Ministra do Supremo Tribunal Federal. Quanto mais alto chegasse, mais abrangente seria a sua atuação pelo que acreditava. Ana Paula tinha pressa. Agora sabemos por quê.
Com carinho, admiração e muita tristeza, mando um abraço forte para a família, que ela tanto amava.
Patricia Almeida
PS: Pra matar as saudades, programa Fórum que Ana Paula Crosara gravou para a TV Justiça em outubro de 2011.
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Nos 38 anos em que viveu, Ana Paula de Resende Crosara, entre muitas outras coisas, foi professora universitária, radialista, advogada, ativista do movimento das pessoas com deficiência, diretora de Políticas Públicas para as Pessoas com Deficiência e minha amiga querida.
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