Obs: a terminologia inadequada foi mantida por ser cópia fiel do jornal citado
Obra malfeita barra aluno deficiente em escola pública
FÁBIO TAKAHASHI
DE SÃO PAULO
Na escola estadual Brigadeiro Eduardo Gomes, zona norte da capital, o governo gastou com reformas para torná-la acessível a deficientes. Mas deixou uma escada com quatro lances, quase 50 degraus, como única forma de se chegar à quadra. O cadeirante precisa ser levado por colegas ou servidores.
Perto dali, a reforma do colégio Parque Anhanguera permite a circulação do cadeirante. Mas o deficiente visual não conta com indicação no solo para evitar choque com obstáculos ou evitar a queda em escadas.Os colégios integraram o programa de obras do governo paulista para tornar acessível parte da rede estadual de ensino, a maior do país. Foram gastos R$ 690 milhões desde 2007 (para acessibilidade e outras necessidades).
Elas integraram também o grupo de escolas onde as obras foram insuficientes ou mal feitas, segundo auditoria do Tribunal de Contas de SP.Foram analisados 100 dos 850 colégios reformados.
Em metade da amostra houve "irregularidades" no trabalho ou "oportunidade de melhoria que deixaria o prédio plenamente acessível".Dois dos princípios de um local adaptado é que o deficiente possa ter acesso a todos ambientes e autonomia para locomoção. Legislações federal, estadual e municipal exigem que prédios públicos já sejam adaptados.Na auditoria do tribunal, algumas das falhas mais encontradas foram ausência de piso tátil para deficientes visuais e de local adaptado para que cadeirantes possam socializar nas quadras.
OBRA INCOMPLETA
A Folha visitou semana passada duas das escolas reformadas. Na Parque Anhanguera, o cadeirante conta com rampas e elevador.
Mas o deficiente visual não possui indicações no solo para andar com segurança.O colégio tem hoje um aluno com essa deficiência. O diretor da escola, Reginaldo Lopes, diz que o estudante nunca teve problema porque os colegas o guiam. "Ao mesmo tempo que o jovem é cruel, também é acolhedor."Na Brigadeiro Eduardo Gomes, há indicação para o deficiente visual, mas o cadeirante não chega à quadra. A engenheira Sanrlei Polini, que acompanhou a Folha, destacou a quase ausência de identificação de ambientes adaptados (exigência legal). "Mas o governo está no caminho, só não pode parar", disse a especialista em regularização de imóveis.Outro problema apontado pela auditoria é o descumprimento da meta lançada em 2007 pelo então governo José Serra (PSDB) de tornar acessível 50% das escolas es0taduais até 2010.
Atualmente, a proporção está em 15%.A auditoria foi usada para julgamento das contas do 0governador em 2010, aprovadas no final de junho.
OUTRO LADO
Secretaria diz que as reformas serão feitas novamente
Caso sejam constatadas falhas na execução do que já foi realizado, empreiteiras serão responsabilizadas
DE SÃO PAULO
A Secretaria da Educação afirmou que fará novas intervenções para solucionar os problemas encontrados na acessibilidade das escolas.
"Vamos voltar e fazer o trabalho de novo. Se for falha de execução, acionaremos as empresas que fizeram o serviço", disse o chefe de gabinete da pasta, Fernando Padula. Segundo a secretaria, há também a possibilidade de ter havido erros nos projetos feitos pelo governo.
A gestão Geraldo Alckmin (PSDB) afirma que, quando se decide reformar uma escola, a ideia é torná-la acessível a qualquer deficiente.
"O processo nas escolas estaduais é dinâmico e grandioso. Erros podem ocorrer. Se houve, vamos arrumar", afirmou a gerente de projetos da FDE (fundação da pasta responsável pelas obras), Avany de Francisco Ferreira.
Em relação ao descumprimento da meta das obras, de tornar acessível 50% da rede, a pasta diz que houve redirecionamento de prioridades.
Parte dos recursos foram para ampliação ou construção de escolas (para desafogar outras) e eliminação de colégios padrão Nakamura (espécie de escola de lata).
ACORDO COM PROMOTOR
A Secretaria da Educação afirmou que apresentou à Promotoria plano para quase triplicar o número de escolas adaptadas em dez anos.
A pasta pretende oferecer ao menos uma unidade acessível em um raio de até 2 km em todas as áreas urbanas do Estado. Nas rurais, a distância aumenta para 15 km.
O plano prevê obras em 1.495 escolas, ao custo total de R$ 1,3 bilhão. A pasta planeja oferecer transporte para o deficiente chegar ao colégio adaptado. Atualmente, são cerca de 15 mil alunos deficientes na rede estadual.
O governo pretende assinar um termo de ajustamento de conduta com a Promotoria, comprometendo-se a cumprir o programa, para evitar novas ações judiciais.
"Hoje, promotores entram na Justiça e nos forçam a reformar escolas que não estavam no plano inicial", disse o diretor de obras da FDE, José Arlindo César Marcondes.
"Isso desorganiza o nosso planejamento e faz com que deixemos de reformar escolas realmente prioritárias."
O promotor Luiz Antonio Miguel Ferreira afirma que ele e outros colegas analisam a proposta. "Pessoalmente, acho o período de dez anos extenso. As escolas já deveriam ser acessíveis", disse Ferreira, coordenador da área de educação do centro de apoio cível da Promotoria. (FÁBIO TAKAHASHI)
Raphael Preto Pereira, 16,em calçada da Vila Guilherme, na zona norte de São Paulo
DEPOIMENTO
Mesmo os colégios particulares não estão prontos para incluir
'Na hora de fazer a matrícula e receber o dinheiro, todos se dizem acessíveis e preparados para receber deficientes físicos'
RAPHAEL PRETO PEREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sou cadeirante. Minha primeira experiência escolar aconteceu numa instituição particular [na zona norte de SP; a escola faliu], ainda no ensino infantil. Eles me deixavam quieto num quarto, sozinho, e não podia chorar.
"Se chorar sua mãe não vem te buscar", dizia uma das "tias". Fiquei nessa escola durante seis meses.
Achamos uma outra escola rapidamente. Na hora de fazer a matrícula e receber o dinheiro, todas falam que são acessíveis e preparadas.
Fui para a Estrela dos Sonhos. Quando estudava na parte da manhã com a professora Ana Paula, foi uma coisa maravilhosa. Nem sei se ela tinha especialização.
Quando passei do jardim 1 para o 2, mudei de professora e passei a não conseguir acompanhar a turma.
Saí depois de um ano. Já vacinados, meus pais procuraram novamente escola não regular, o Centro de Reabilitação da Uniban.
A proposta era, no menor tempo possível, acostumar os deficientes com a rotina escolar e depois incluí-los numa escola regular. Fiquei lá no ano de 2002.
Voltei para o ensino regular particular, no Instituto Cultural Criando Arte, que possui rampa e se mostrou disposto a fazer outras adaptações. Me senti seguro.
Em 2006, fui para a escola estadual Buenos Aires, onde estou até hoje. Ela possui o mínimo de adaptações físicas e funcionários comprometidos com a inclusão.
Após a Folha publicar uma reportagem, o banheiro foi consertado [estava sem porta]. Mas a carência de materiais impede que deficientes com menos independência do que eu façam tarefas triviais como escrever.
O fato é que existem hoje poucas escolas inclusivas, públicas ou particulares.
RAPHAEL PRETO PEREIRA 16, cadeirante
ANÁLISE
Falta de acesso no ambiente escolar é paradoxo para educação
SHIRLEY SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Geralmente, não pensamos nos detalhes sobre ir e vir. Tampouco nos preocupamos se o local a ser visitado tem acesso fácil, se haverá comunicação entre os diferentes espaços.
A situação é diferente para pessoas com deficiências físicas, visuais ou com mobilidade reduzida. Elas precisam de locais projetados para permitir a acessibilidade e, também, que esse acesso possa ser realizado pela própria pessoa, de forma independente e autônoma.
Por serem espaços institucionais que têm como tarefa a produção de conhecimento, a construção de cidadania coletiva e a preparação para o trabalho, a situação das escolas é peculiar.
O reconhecimento do papel fundamental que a educação tem na vida das pessoas, em sociedades nas quais os princípios da democracia e da cidadania direcionam a organização política e a sociedade civil, torna-a compulsória (obrigatória), considerada direito público.
A não existência de acessibilidade em escolas públicas é um paradoxo, pois o próprio Estado que define a obrigatoriedade da educação acaba por não permitir que as famílias cumpram o dever constitucional de ter os seus filhos na escola.
O relatório do Tribunal de Contas do Estado aponta que, mesmo onde já houve obras, alunos com deficiência continuam com grandes dificuldades. A justificativa, por exemplo, da não instalação de pista podotátil para deficientes visuais devido à ausência de fornecimento pode soar como impossível.
De qualquer forma, é um avanço o poder público entender que escolas devam ser adaptadas. Mas continua a questão: o que fazer com quem não cumpre a lei (Decreto 5.296 de 2004, por exemplo) e não adapta escolas e outros espaços?
SHIRLEY SILVA é professora da Faculdade de Educação da USP, pesquisadora de políticas públicas e de educação inclusiva
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