Autora
Francinete Alves Giffoni
As explicações de como e porque algumas pessoas desenvolvem habilidades superiores não estão suficientemente esclarecidas. O que existe até o momento é um consenso entre estudiosos acerca da conjunção de dois fatores que influenciam o desenvolvimento da inteligência: a herança genética e a estimulação ambiental.
Dentre as diversas teorias do desenvolvimento, destacam-se os estudos de Piaget, os quais demonstram como, ao longo desse processo, cruza-se a filogênese, relacionada aos determinantes biológicos da espécie, com a ontogênese, que envolve os aspectos culturais.
O enfoque piagetiano da construção da inteligência permite compreender de que modo a interação desses dois aspectos vai delineando cada ser humano como um indivíduo diferenciado e único. Em seus estudos, Piaget demonstra que a evolução da inteligência ocorre pela estimulação de mecanismos internos a partir do contato com o ambiente. Ele denomina de motivos os estímulos que geram desequilíbrios no interior do psiquismo do sujeito levando-o à ação. Esses motivos incluem não só os objetos e pessoas que o sujeito encontra, como também os conflitos ou perturbações aos quais é submetido. São eles que põem em ação os processos cognitivos de que o sujeito dispõe para se auto-regular e, desse modo, tentar superá-los ou ultrapassá-los. Daí surge a palavra motivação que pode ser entendida como motivo que leva à ação e, nesse sentido, tornou-se importante conceito para a pedagogia, porque é ela que impulsiona o sujeito a atuar em seu meio, promovendo interações que resultam na ativação dos processos de desenvolvimento e aprendizagem. À medida que a motivação conduz à interação e esta leva a modificações das estruturas cognitivas no sentido da intencionalidade, o processo de aprendizagem acontece e o sujeito alcança um grau cada vez maior de adaptação (Deve-se levar em conta que essa interação se dá em um determinado contexto sócio-cultural, cujos valores tendem a influenciar os rumos do processo).
O construtivismo piagetiano demonstra que a motivação começa desde que o bebê se mobiliza em função de suas necessidades básicas, ao entrar em contato com o ambiente que o cerca. O seio materno, a chupeta, a mamadeira, cada novo estímulo provoca um desequilíbrio nos esquemas de ação que se modificam estrutural e funcionalmente, tentando conhecer de modo prático esses objetos, definindo-os pelo uso que faz deles. O conhecimento do objeto significa que este foi assimilado. Reestabilizam-se os esquemas de ação, permanecendo em um estado temporário de equilíbrio até que um novo estímulo venha desequilibrá-los.
Desta forma, desde a fase do lactente até a idade adulta, acontecem infinitos desequilíbrios e reequilibrações não só no plano cognitivo, mas também no âmbito da moral e no campo nas trocas afetivas. Os conflitos encontrados em todas essas áreas são indispensáveis ao desenvolvimento do indivíduo em suas dimensões física, mental, emocional, social, espiritual.
Piaget trata como igualmente cognitivas todas as fases do desenvolvimento, postulando que este se deve ao processo de desequilíbrio/reequilibração, que permite a assimilação do conhecimento e a aprendizagem. O conceito de assimilação é central na discussão aqui proposta, porque é através dela que o sujeito retira do ambiente as informações que passam a fazer parte de sua organização psíquica e é a partir do que foi assimilado que ele constrói percepções mais organizadas e realiza ações mais eficazes e adaptativas.
Tomando por base esse conceito, assume importância o entendimento de que a assimilação e, conseqüentemente, a aprendizagem acontecem devido à modificação de estruturas mentais, cujas conexões e rearranjos vão determinando as características que a inteligência adquire em cada fase do desenvolvimento. Esse mecanismo pode ser encontrado tanto nos indivíduos com altas habilidades/superdotação como naqueles ditos "normais", uma vez que o mesmo processo é responsável pela evolução de todos os seres humanos, que é contínua e não dá saltos. Conforme afirma Piaget (1997, p.13)
O desenvolvimento intelectual envolve uma equilibração progressiva, uma passagem contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio superior. Assim, do ponto de vista da inteligência, é fácil se opor à instabilidade e incoerência relativas às idéias infantis à sistematização de raciocínio no adulto. No campo da vida afetiva, notou-se, muitas vezes, quanto o equilíbrio dos sentimentos aumenta com a idade. E, finalmente, também as relações sociais obedecem à mesma lei de estabilização regular.
E, assim, cada vez que uma perturbação incide sobre o sistema cognitivo, este se desequilibra e logo a seguir se mobiliza na busca de um funcionamento mental superior que permita um estado de equilíbrio mais estável e mais amplo.
E, no caso das altas habilidades/superdotação, pergunta-se: como se explica o modo como o psiquismo reage diante de certos estímulos, chegando a manifestar potencialidades e talentos algumas vezes de forma aparentemente incompreensível?
Como foi dito anteriormente, para essa questão não existe uma resposta bem definida, apesar dos avanços da neurociência, da psicopedagogia e áreas afins. A proposta aqui é estudar algumas nuances do desenvolvimento de altas habilidades/superdotação à luz do construtivismo piagetiano, com o objetivo de contribuir para o entendimento dos mecanismos provavelmente envolvidos no processo.
Piaget deixa explícita, em poucas palavras, a base de sua teoria de construção da inteligência:
É, portanto, em termos de equilíbrio que vamos descrever a evolução da criança e do adolescente. Deste ponto de vista, o desenvolvimento mental é uma construção contínua comparável à edificação de um grande prédio que, à medida que se acrescenta algo, ficará mais sólido, ou à montagem de um mecanismo delicado, cujas fases gradativas de ajustamento conduziriam a uma flexibilidade e uma mobilidade das peças tanto maiores quanto mais estável se tornasse o equilíbrio (Piaget, 1997, p. 14).
Neste ponto, pode-se inserir a discussão sobre as variações que ocorrem nos sujeitos com altas habilidades/superdotação, desde que iniciam suas aprendizagens. Segundo as idéias de Piaget, admite-se que o processo que leva à evolução de um estágio de desenvolvimento para o seguinte é o mesmo para todos os indivíduos e que o que vai produzir diferenças entre um dito "normal" e outro considerado "superdotado" e até entre "superdotados" é o modo e o ritmo como as estruturas cognitivas se organizam nas tentativas de entender o mundo e se adaptar a ele.
A possibilidade de haver diferentes reorganizações nas estruturas cerebrais responsáveis pelo conhecimento é um aspecto fundamental para a análise das variações que ocorrem nas manifestações da inteligência, inclusive as altas habilidades/superdotação.
Descrições das imagens - Figura de altas habilidades 1 -2 A figura 1 mostra um neurônio: célula do sistema nervoso central responsável pela transmissão do impulso nervoso que conduz a informação. O neurônio é composto por um corpo celular que apresenta prolongamentos chamados dendritos (porque se assemelham a dedos) e um filamento mais longo denominado axônio.
3A figura 2 mostra algumas sinapses que são conexões entre os dendritos de um neurônio com o axônio de um neurônio vizinho.
Sabe-se que, no processo de desenvolvimento humano, a maturação do sistema nervo o permite que os estímulos oferecidos sejam transmitidos e assimilados através das conexões entre neurônios (fig.1). Essas conexões, conhecidas como sinapses (fig.2), são formadas quando o axônio de um neurônio aproxima-se dos dendritos de um neurônio vizinho, desencadeando um fenômeno eletro-químico (O impulso elétrico é desencadeado pela presença do estímulo no instante em que este desequilibra as estruturas cognitivas. Primeiro o sinal elétrico se propaga dentro do neurônio e dá início a um processo bioquímico que acontece na terminação do neurônio:a liberação de uma substância neurotransmissora na fenda sináptica, espaço existente entre um neurônio e o subsequente.) por meio do qual o impulso nervoso é transmitido. Nesse momento, sustâncias mediadoras chamadas neurotransmissores são liberadas na fenda sináptica (O termo fenda significa que na sinapse não há um contato físico de contigüidade entre os neurônios.), estimulando os receptores que se localizam nos dendritos do neurônio vizinho.
Essa comunicação entre os neurônios permite que os diversos estímulos do ambiente sejam percebidos e representados no psiquismo, gerando respostas motoras e emocionais, constituindo a aprendizagem e a memória. Dessa forma, as informações que transitam no sistema nervoso são responsáveis pela manutenção das funções corporais, pela interação do indivíduo com o meio, permitindo-lhe agir sobre ele.
Quando um bebê agita seu maracá e ouve o som dos guizos, forma-se uma rede de neurônios que registram a informação e a armazenam em esquemas de memória. Essa memória estará disponível sempre que o esquema for reativado, de modo que, em outro momento, o bebê pode refazer as conexões, evocando a informação. A partir da assimilação da experiência original, ele pode modificá-la, criando novas conexões, como, por exemplo, coordenar as batidas do maracá em um novo ritmo ou aproximá-lo de outros objetos, para produzir diferentes sons. Se as experiências lhe agradam e motivam a continuar fazendo tentativas, na seqüência de seu desenvolvimento, ele pode buscar o contato com instrumentos musicais e demonstrar desde cedo um talento para a musicalidade.
Um menino de cinco anos, ao observar o céu, pode se sentir estimulado a fazer perguntas sobre as fases da lua e, no diálogo com adultos, começar a questionar como ela funciona em relação à Terra. Daí em diante, pode implementar uma busca por mais informações, pesquisando sobre planetas, sobre os dias e as noites, etc. Transmitidas sob forma de impulsos em seu cérebro, as informações caminham rapidamente entre os neurônios, criando inúmeras conexões que se interligam sob a forma de verdadeiras redes, que vão cada vez mais se ampliando em esquemas maiores e mais complexos.
De posse desses esquemas, e conforme sua capacidade de integrar informações, o menino pode combiná-las de diversas formas, elaborando conjuntos de raciocínios que podem revelar altas habilidades/superdotação. Isso vai depender da qualidade e quantidade dos estímulos oferecidos pelo ambiente, da fisiologia de suas estruturas cognitivas, além de também influenciar nesse processo os valores culturais do contexto no qual ele vive.
A valorização social do conhecimento interfere na construção da inteligência, podendo direcionar essa construção para determinados tipos de conhecimento por agregar significados ao que o sujeito sente, percebe, pensa ou realiza. Os valores culturais do contexto e do momento histórico estão muitas vezes por trás da motivação para a aprendizagem de determinados tipos de conhecimento em detrimento de outros. Eles podem funcionar como um estímulo a mais ao desenvolvimento de certas potencialidades humanas e podem dificultar o aparecimento de aptidões que o sujeito tem, mas, por falta de estímulo, não manifesta. Isso vale tanto para pessoas com altas habilidades/superdotação como para aquelas ditas "normais".
Costuma-se decompor as aquisições cognitivas em tipos específicos de conhecimento como: linguísticos, musicais, matemáticos e habilidades para lidar com informações perceptuais como cores, formas, sucessões temporais ou vínculos afetivos. Na verdade, as conexões se formam a partir dos variados tipos de estímulos, cujas representações não se desenvolvem separadamente.
Elas vão se integrando no psiquismo de modo indissociável. Acontece que, de acordo com os valores vigentes na sociedade, as aprendizagens deste ou daquele tipo de conhecimento são ressignificadas e podem perder ou ganhar importância a cada fase da vida do sujeito.
Segundo Piaget, no processo de organização das aquisições cognitivas, estabelecem-se níveis sucessivos de complexidade que culminam com o desenvolvimento da capacidade de fazer abstrações mais complexas, responsáveis pela elaboração do pensamento hipotético dedutivo. Isso ocorre tanto na habilidade para a matemática quanto nas demais manifestações da inteligência. Indaga-se por que, em um dado momento do desenvolvimento, às vezes até muito precocemente, um indivíduo apresenta talento incomum ou desempenho maior que o esperado para sua faixa etária, caracterizando a presença de altas habilidades/superdotação em um ou mais de um campo de conhecimento.
Respostas para essa indagação podem ser buscadas nos estudos piagetianos quando explicam o processo de organização e reorganização das estruturas cognitivas durante o processo de estimulação destas.
Embora Piaget não tenha desenvolvido pesquisas voltadas especificamente ao desenvolvimento de altas habilidades/superdotação, alguns conceitos e noções estabelecidos em sua teoria podem enriquecer a discussão do tema.
Uma destas noções é a de auto-regulação, uma função que, segundo Piaget, está presente em todos os processos biológicos dos organismos vivos. Ele afirma que a construção do conhecimento pelos seres humanos obedece ao funcionamento de mecanismos fisiológicos que acontecem no interior das estruturas cognitivas. Ele se refere a um potencial endógeno de mutação e de recombinação que se manifesta num poder ativo de auto-regulação (1978, p. 32).
Os mecanismos de auto-regulação explicam a possibilidade de haver variações inusitadas durante o processo de construção da inteligência (Para Piaget (1978, p.31), as auto-regulações são mais gerais e mais fundamentais que as próprias transmissões hereditárias.). A capacidade do organismo se autorregular é responsável pelas diferenciações que vão ocorrendo nas estruturas cognitivas, de modo que um esquema diferenciado possa se construir a cada contato do sujeito com novos estímulos (Inicialmente os estímulos são os objetos concretos do ambiente, mas gradativamente vão se estendendo às pessoas e adquirindo características mais abstratas como as operações matemáticas, os valores, etc.).
A partir dessa compreensão, Piaget critica o clássico esquema S-R, considerando-o insuficiente para explicar o processo de desenvolvimento da inteligência. Ele demonstrou em suas pesquisas que, no momento em que a estrutura cognitiva entra em contato com o estímulo, este não gera necessariamente uma resposta automática e esperada, como ocorre num reflexo ou nos mecanismos hereditários identificados nas condutas instintivas. Pelo contrário, o ser humano consegue dar respostas novas quando colocado diante de um mesmo estímulo.
Ele propõe então um outro esquema, cuja configuração é S(A)R, no qual o (A) representa a assimilação que acontece a partir do estímulo (S) e que gera a resposta (R). A configuração S(A)R permite explicar, por exemplo, por que, apesar de estar com fome, uma pessoa pode optar por não ingerir determinado alimento que decidiu excluir de sua dieta. Explica também por que o fogo pode ser utilizado de modo construtivo ou destrutivo, sendo simbolizado de diversos modos conforme as influências do momento histórico e do contexto cultural. Essa teoria esclarece por que as peças de um jogo de xadrez podem ser usadas numa partida de damas desde que as regras sejam aceitas/assimiladas pelos parceiros. Permite ainda compreender a importância dos aspectos afetivos e dos valores culturais no estabelecimento de diferentes direcionamentos na construção da inteligência e da própria noção de eu.
Segundo ele, enquanto o esquema S-R presta-se apenas à explicação das condutas instintivas, o esquema S(A)R permite incluir a flexibilidade e a plasticidade inerentes aos processos cognitivos do ser humano. Na passagem do instinto à inteligência, Piaget (1978, p).36) se refere ao caráter rígido e cego, mas infalível do instinto em contraposição às propriedades de intencionalidade consciente, de plasticidade, mas também de falibilidade dos aspectos afetivos, morais e cognitivos do homem. Essa proposição fundamenta a teoria de que a plasticidade observada no desenvolvimento humano, desde a infância até a vida adulta, deve-se à modificação das estruturas cognitivas e sua auto-regulação diante de cada contato com os estímulos.
Descrições das figuras - Figura de altas habilidades 3 - A fig. 3 mostra um esquema cognitivo no qual um neurônio se liga a cinco outros e estes se ligarão a outros tantos, formando estruturas que se ramificam. Na fig. 4, os esquemas cognitivos se organizam em forma de redes de neurônios que se interconectam.
Piaget traz a percepção de que todos os indivíduos apresentam diferenças no modo como as estruturas cognitivas respondem aos estímulos. Sua teoria permite inferir que as diferenças observadas como altas habilidades/superdotação podem ser compreendidas como a expressão de mudanças mais intensas no ritmo e na forma como se compõem os esquemas cognitivos a partir das conexões entre os neurônios.
Um número maior de conexões e rearranjos entre os neurônios pode, por exemplo, permitir que, para um determinado sujeito, cada nova informação seja mais rapidamente assimilada e integrada aos esquemas já construídos, preparando-o para a construção de outros mais amplos e mais eficientes.
Os conceitos de competência e sensibilidade desenvolvidos na teoria piagetiana também são importantes para a análise da questão das altas habilidades/superdotação. Segundo Piaget (1978, p. 33), a cada nova experiência de contato com um estímulo, as estruturas cognitivas passam por mudanças e adquirem uma sensibilidade que ele chamou de competência. Graças a essa competência um indivíduo pode demonstrar maior facilidade do que outras pessoas para assimilar um ou mais tipos de conhecimento, bem como resolver problemas de forma mais rápida e criativa.
Piaget considera que o processo de construção da inteligência se revela no aumento progressivo da sensibilidade e da competência. A aprendizagem para ele é a aquisição da competência para dar respostas cada vez mais eficazes e adaptativas às situações que se apresentam. Desta forma, ele compreende essa construção como um processo vivo que, por ser autorregulável, é também de certa forma imprevisível e, por isso mesmo, criativo e inovador.
Quando Piaget se refere ao desenvolvimento como um fenômeno até certo ponto imprevisível, ele permite a inferência de que as estruturas cognitivas podem, em alguns casos, adquirir uma sensibilidade maior, modificando-se de forma diferenciada daquela que normalmente deveria ocorrer. Essa variação teria como conseqüência a manifestação de uma competência especial que, por hipótese, poderia ocasionar a ampliação do poder de assimilação e acomodação das estruturas mentais, as quais teriam condições de se transformarem de modo mais flexível e/ou num ritmo mais rápido. Tudo isso ampliaria as possibilidades de compreensão e invenção, aumentando muitíssimo a capacidade intelectual do indivíduo, fazendo-o sobressair-se em termos de desempenho diante dos demais.
Indaga-se nesse ponto à teoria piagetiana por que somente alguns indivíduos desenvolvem uma sensibilidade mais aguçada em suas estruturas cognitivas, apresentando maior competência do que outros para a aprendizagem de alguns tipos de conhecimento. Uma explicação possível reside no fato já discutido anteriormente de que o processo de aprendizagem não segue um esquema predeterminado S-R, como no caso dos instintos, e sim o esquema S(A)R, que tem como característica a flexibilidade das estruturas e como resultado a variabilidade das respostas.
Embora não se possa definir se uma sensibilidade especial para aprender é prioritariamente determinada pela genética ou se depende mais do processo de modificação das estruturas cognitivas pelos estímulos oferecidos, pode-se inferir, a partir da ótica piagetiana, que nas pessoas com altas habilidades/superdotação essas estruturas parecem se organizar e reorganizar
de modo diferente do que acontece com a maioria das pessoas. Parece haver uma flexibilidade maior no momento do estabelecimento das conexões neuronais. Sendo assim, o sujeito poderia assimilar o conhecimento de modo mais rápido, integrando conhecimentos de diferentes domínios.
Uma compreensão mais abrangente lhe possibilitaria apresentar respostas mais criativas e diversificadas diante dos problemas. Essa mesma premissa justificaria a facilidade com que pessoas com altas habilidades/superdotação conseguem realizar operações lógicas ou revelar talento nas artes plásticas, na música, além de desde cedo despertarem para habilidades de liderança e comunicação, manifestando capacidade de auto-percepção e empatia.
Pesquisas têm indicado que o cérebro dessas pessoas poderia ter características orgânicas diferenciadas.
Resultados dos estudos do cérebro de Einstein, realizados por uma equipe do Departamento de Psiquiatria e Neurociências da Faculdade de Ciências da Saúde da McMaster University (1985)11 e publicadas em junho de 1999, revelaram que uma parte de seu cérebro era fisicamente diferente.
Comparando as medidas anatômicas do cérebro de Einstein com aquelas de cérebros de 35 homens e 50 mulheres com inteligência normal, o grupo de pesquisa descobriu que, no caso de Einstein, o cérebro era semelhante aos outros pesquisados, exceto nas regiões chamadas de lobos parietais.
Descrição da imagem - Anatomia do cérebro - lobos: frontais, parietais, occipitais e temporais
Em ambos os lados do cérebro de Einstein, os lobos parietais eram cerca de 15% mais largos do que nos outros cérebros estudados.
O cérebro normal contém uma região chamada opérculo parietal e lobo parietal inferior; neste último reside o raciocínio matemático e visual. No cérebro de Einstein, o opérculo parietal (indicado na figura) foi perdido. Foi isto que permitiu ao lobo parietal inferior crescer 15% mais que o normal.
Os neurônios localizados nessa região do córtex cerebral são responsáveis pela combinação das impressões relacionadas à forma e ao peso e as transformam em percepções gerais.
Também estão relacionados à orientação no espaço e à percepção da posição das partes do corpo.
Como essa região é relacionada à cognição viso-espacial, ao pensamento matemático e às magens de movimento, talvez a alteração na anatomia explique por que Einstein resolvia problemas científicos de modo extraordinário.
Um outro detalhe encontrado no estudo é que seu cérebro não continha uma fenda, conhecida como sulcus. Os pesquisadores acreditam que essa diferença anatômica pode ter permitido que um maior número de neurônios estabelecesse conexões entre si e trabalhassem em conjunto mais facilmente, criando uma extensão extraordinariamente grande de córtex altamente integrado dentro de uma rede funcional. Segundo a conclusão dos pesquisadores, os resultados sugerem que as diferenças nas capacidades das pessoas em realizar determinadas funções cognitivas podem ser devidas até certo ponto às diferenças estruturais nas regiões do cérebro que intermedeiam essas funções.
Concluindo, embora esses resultados pareçam interessantes, não se pode afirmar se o cérebro de outros físicos, matemáticos e cientistas brilhantes apresentariam alterações em sua anatomia.
Hoje é possível observar os cérebros de gênios vivos através de imagens por ressonância magnética e a tomografia por emissão de pósitrons. Estes exames permitem que os cientistas observem o cérebro em funcionamento, observando não apenas as diferenças na estrutura cerebral, mas também mudanças na atividade que ocorre no momento em que aquelas estruturas estão sendo observadas.
Por exemplo, se o cérebro de Einstein tivesse sido estudado com essa tecnologia, os cientistas poderiam ter observado seus grandes lóbulos parietais em funcionamento e procurado discernir as atividades nessas áreas. Isso facilitaria a reflexão sobre suas hipóteses, porque o estudo não investigou como os neurônios nesse cérebro estavam conectados entre si e, naturalmente, não se poderia afirmar com certeza se havia diferenças na maneira como os neurônios funcionavam.
Vale lembrar que, independentemente de ter ou não diferenças anatômicas ou funcionais que justifiquem o aparecimento de altas habilidades/superdotação, cada indivíduo se desenvolve de forma original, ressaltando-se que o processo de desenvolvimento intelectual está inserido na construção do ser humano em todas as suas dimensões e que essa construção se dá por meio de desequilíbrios/reequilibrações modulados pelos mecanismos de auto-regulação, indispensáveis para a variabilidade observada no processo.
Piaget diz que a reorganização e auto-regulação das estruturas cognitivas permitem que aconteçam novidades durante o processo de construção da inteligência. O termo novidades foi utilizado por ele para designar ocorrências novas, originais e imprevisíveis que podem acontecer no percurso do desenvolvimento. Nesse sentido, propõe-se aqui considerar a emergência de altas habilidades/superdotação como uma dessas novidades, que são percebidas quando, por exemplo, o sujeito começa a dar respostas mais avançadas do que aquelas esperadas em determinada etapa do desenvolvimento. Estas respostas diferenciadas se explicariam pelas auto-regulações e reequilibrações que estariam se processando de forma especial.
Sabendo-se que as auto-regulações são propriedades inerentes ao sistema nervoso e que elas são responsáveis pelas diferenciações de todos os seres humanos, pode-se hipotetizar que, nas pessoas com altas habilidades/superdotação, elas poderiam ocorrer de modo extraordinário, promovendo mudanças mais marcantes no sentido de serem potencializadoras dos esquemas cognitivos. Teoricamente isto pode acontecer tanto a partir das conexões neuronais estabelecidas desde as fases mais precoces do desenvolvimento quanto em outros momentos da vida.
Além disso, as mudanças poderiam ocorrer com relação tanto a uma maior quantidade de conexões quanto à qualidade destas. Conexões mais flexíveis levariam à formação de redes mais amplas de neurônios e também mais diversificadas, permitindo um maior número de respostas para os problemas.
Além disso, as combinações entre diferentes sistemas neuronais favoreceriam elaborações intelectuais em níveis crescentes de complexidade. A partir dessa concepção, propõe-se aqui que mudanças no interior das estruturas cognitivas ou nas conexões entre elas podem dar origem a manifestações que correspondem ao conceito de altas habilidades/superdotação.
Portanto, um determinado bebê poderia apresentar um nível mais elaborado de coordenação motora do que aquele esperado para outras crianças da mesma faixa etária. Explicaria por que um estudante de 10 anos com altas habilidades/superdotação estaria apto a resolver problemas matemáticos do período operatório formal, ultrapassando o estágio de desenvolvimento previsto para sua idade.
Embora Piaget não se refira à inteligência como um conjunto de habilidades, nem tenha se dedicado ao estudo do funcionamento cognitivo de pessoas com altas habilidades/superdotação, ele muito contribuiu para a compreensão de fenômenos pertinentes ao desenvolvimento da inteligência quando apontou a neurobiologia do cérebro como caminho para o entendimento dos processos de auto-regulação. Suas idéias permitem compreender a diversidade encontrada entre os seres humanos e estimulam a busca de maiores explicações nesse campo: "quanto às coordenações nervosas cabe à biologia mostrar suas relações com as regulações orgânicas de todos os níveis" (1978, p. 39).
Desse modo, Piaget (1978) afirma que os processos de tomada de consciência e abstração envolvidos na construção do conhecimento aperfeiçoam-se em seu percurso, que se estende por um longo período de tempo graças às reequilibrações sucessivas e segue, inexoravelmente, os seguintes estágios: sensório-motor, pré-operacional, operações concretas e operações formais.
Para ele, a evolução da inteligência se dá à medida que o sujeito constrói progressivamente as estruturas específicas para conhecer a realidade. Tornando-se cada vez mais complexas e aperfeiçoadas, estas estruturas possibilitam uma melhor adaptação à vida e ao ambiente.
Vale lembrar que esse processo de construção, que resulta das trocas que se estabelecem entre o sujeito e o meio físico e social, é o mesmo para todas as pessoas quer tenham altas habilidades/superdotação ou não. A diferenciação no sentido das altas habilidades/superdotação vai depender do modo como se cruzam a filogênese e a ontogênese no momento da atividade cognitiva.
É importante enfatizar que os fatores que irão influenciar o desenvolvimento da inteligência e também o surgimento de altas habilidades/superdotação são: o potencial genético, representado pela constituição anátomo-estrutural e bioquímica das vias neuronais; os estímulos oferecidos pelo ambiente e a valorização social expressa nas demonstrações de satisfação com as conquistas conseguidas pela criança no contexto educacional da escola, da família e da sociedade em geral. No caso das manifestações das altas habilidades/superdotação, assume especial importância o contexto no qual se dá aprendizagem, uma vez que este pode ser um fator facilitador ou cerceador das manifestações de potencialidades e talentos cuja emergência pode depender da valorização social de determinados tipos de conhecimento. Conforme o valor dado pelo contexto, o sujeito pode se motivar ou não a apresentar suas potencialidades. Pode nem sequer entrar em contato com suas habilidades ou, mesmo que se perceba como talentoso em alguma área, não se dedicar como poderia, caso esta não seja estimulada ou valorizada socialmente.
Atuando isoladamente ou combinados entre si, esses fatores poderiam promover diferenças na qualidade e no ritmo das aquisições cognitivas, gerando interferências nos diversos esquemas que estão se construindo. Observa-se que algumas pessoas desenvolvem altas habilidades/superdotação apesar de encontrarem ambientes pouco estimulantes e até em condições adversas. Nesses casos, elas conseguem desenvolver um modo próprio de funcionamento mental que as levam a ter sucesso na aprendizagem, apesar dos limites que se interpõem em sua empreitada rumo ao conhecimento. Isto também se explica pela flexibilidade e plasticidade das conexões neuronais, que permitem as mais diversas adaptações, deixando em segundo plano as determinações biológicas e sobrepujando o poder das influências do meio.
Admitindo-se que o cérebro humano tem essas características (plasticidade/flexibilidade), pode-se compreender as especificidades e nuances que caracterizam o processo de construção da inteligência e, de forma mais ampla, o processo de construção do próprio ser humano.
Não se buscou apresentar aqui um conjunto de características de aprendizagem dos sujeitos com altas habilidades/superdotação, e sim demonstrar que o caminho que eles trilham na construção de sua inteligência é o mesmo representado na espiral do desenvolvimento normal do ser humano, havendo apenas alguns aspectos que os diferenciam na manifestação de suas potencialidades e necessidades.
A seguir, será tratada a questão de como deve ocorrer o processo de identificação de alunos com altas habilidades/superdotação na escola e como lidar com as especificidades e demandas que emergem em seu processo de aprendizagem.
Fonte do texto: A Educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar Altas Habilidades/Superdotação - MEC
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