Ally e Ryan

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sábado, 31 de março de 2012

Audiodescrição - recurso de acessibilidade para a inclusão cultural das pessoas com deficiência visual


Lívia Maria Villela de Mello Motta


A audiodescrição é um recurso de acessibilidade que amplia o entendimento das pessoas com deficiência visual em eventos culturais (peças de teatro, programas de TV, exposições, mostras, musicais, óperas, desfiles, espetáculos de dança), turísticos (passeios, visitas), esportivos (jogos, lutas, competições), acadêmicos (palestras, seminários, congressos, aulas, feiras de ciências, experimentos científicos, histórias) e outros, por meio de informação sonora. Transforma o visual em verbal, abrindo possibilidades maiores de acesso à cultura e à informação, contribuindo para a inclusão cultural, social e escolar. Além das pessoas com deficiência visual, a audiodescrição amplia também o entendimento de pessoas com deficiência intelectual, idosos e disléxicos.

Com este recurso, é possível conhecer cenários, figurinos, expressões faciais, linguagem corporal, entrada e saída de personagens em cena, bem como outros tipos de ação e detalhes que serão importantes para que as pessoas com deficiência visual construam o seu entendimento e interpretem aquilo que assistem. A audiodescrição é, desta forma, um instrumento de inclusão cultural, que permite a participação plena de pessoas com deficiência visual em eventos culturais, turísticos, esportivos, pedagógicos e atividades sociais, contribuindo para desconstruir barreiras que, geralmente, mantêm as pessoas com deficiência afastadas e isoladas na sociedade. Atividades como: frequentar sessões de cinema, ir ao teatro e a outros espetáculos, visitar museus, exposições e mostras ainda não fazem parte do cotidiano das pessoas com deficiência e, mais especificamente, das pessoas com deficiência visual, principalmente pela falta de acessibilidade arquitetônica, comunicacional e atitudinal, confinando-os a conviver com seus pares, em espaços especialmente destinados a eles, como as instituições, por exemplo.

A audiodescrição traz a formalidade para algo que era, anteriormente, feito informalmente, graças à sensibilidade e boa vontade de alguns. Isso acontece e acontecia quando as pessoas com deficiência visual, mais curiosas, começavam a fazer perguntas, tirar dúvidas, durante o filme, peças de teatro e outros tipos de espetáculo. Entretanto, nem todas as pessoas que os acompanham estão preparadas para prestar esse tipo de serviço, e, além disso, essas pessoas também querem assistir o filme ou espetáculo e, ter que dar informações adicionais, pode fazer com que a pessoa perca o fio da meada, deixe de entender determinadas coisas e cenas. Como uma atividade formal, ligada às artes visuais e ao entretenimento, entretanto, é algo bem mais recente, tendo início nos anos 80 nos Estados Unidos e Inglaterra.

Nos Estados Unidos, teve início em 1981, em Washington DC, no Arena Stage Theater, como resultado do trabalho de Margaret e Cody Pfanstiehl. Eles fundaram um serviço de audiodescrição que promoveu a descrição de peças de teatro e até o final dos anos 80, mas de 50 casas de espetáculo já tinham em sua programação algumas apresentações com descrição.

Na Inglaterra, essa prática data também dos anos 80, tendo início em um pequeno teatro chamado Robin Hood, em Averham, Nottinghamshire, onde as primeiras peças foram narradas. Um dos mantenedores do teatro, Norman King, ficou tão impressionado com os benefícios das descrições, que incentivou a Companhia de Teatro Real de Windsor a introduzir esse serviço em uma abrangência maior. Instalaram, então, o equipamento para a transmissão simultânea para a audiência no Teatro Real, em fevereiro de 1988, com a peça “Stepping Out”. Hoje, há 40 teatros no Reino Unido que oferecem, regularmente, apresentações com audiodescrição. É o país líder nesse setor, seguido pela França, com 5 teatros.

No Brasil, a primeira peça comercial a contar com o recurso de audiodescrição foi “O Andaime”, no Teatro Vivo, em março 2007. O teatro dispõe de aparelhos de tradução simultânea e a audiodescrição é feita pelos voluntários do Instituto Vivo, que participam de curso de formação de audiodescritores. O projeto de inclusão cultural, que deu origem a este trabalho, foi elaborado por mim e por Isabela Abreu, na época integrantes do Grupo Terra, ONG cujo objetivo é a inclusão social das pessoas com deficiência visual, pelo contato com a natureza. Foi nas atividades promovidas pelo Grupo Terra, passeios para lugares de extrema beleza, com estreito contato com a natureza, que pudemos perceber a necessidade de descrever as paisagens para as pesssoas com deficiência visual, podendo, então, constatar a importância da descrição para uma participação mais plena nas atividades sociais e culturais, enfatizando o seu uso como prática nos passeios.

O Teatro Vivo foi e continua sendo o primeiro e único teatro brasileiro com recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência visual (audiodescrição, programas em braille e ampliados), pessoas com deficiência física, pessoas obesas e, mais recentemente, para pessoas com deficiência auditiva e surdos (introdução dos espetáculos em LIBRAS e legendas), com apresentações com acessibilidade todos os domingos. A Vivo, em parceria com Secretarias de Cultura, tem contribuido para divulgar a audiodescrição, levando peças, filmes e óperas para serem exibidos em outros teatros pelo Brasil afora.

Também o cinema vem se beneficiando com a audiodescrição, em vários países europeus. No Reino Unido, Chapter Arts Center, em Cardiff, foi o primeiro a fazer uso do recurso com tradutores ao vivo. Na França, a Fundação Valentin Haüy também começou a oferecer esses serviços. Na Europa e nos Estados Unidos, já são muitos os filmes que contam com o recurso.

No Brasil, o primeiro filme, no circuito comercial, com audiodescrição foi “Irmãos de Fé”, do Padre Marcelo, lançado em 2005. Outras iniciativas têm sido feitas, como o Clube do Silêncio, em Porto Alegre, que produziu alguns filmes curta-metragem com audiodescrição; o Ponto de Cultura em Campinas, coordenado por Bell Machado; a Iguale, empresa de comunicação dirigida por Maurício Santana; além de trabalhos de pesquisadores, como a professora Dra. Eliana Franco, da Universidade Federal da Bahia, e o professor Dr. Francisco Lima, da Universidade Federal de Pernambuco. Ambos têm feito trabalhos importantes sobre a audiodescrição, sendo que a primeira com filmes e o segundo com mapas e recursos didáticos. Também o Festival Internacional de Filmes sobre a Deficiência Assim Vivemos , produzido por Lara Pozzobon, que acontece no Rio de Janeiro e em Brasília, oferece acessibilidade para pessoas com deficiência visual e auditiva em todos os filmes desde 2003. Graciela Pozzobon, atriz, é responsável pela audiodescrição em todos os filmes do festival.

Na televisão, o primeiro episódio envolvendo a audiodescrição aconteceu em 1983, na rede japonesa NTV. Nos anos 80, algumas experiências também foram feitas na Espanha, mas foi nos Estados Unidos que a audiodescrição decolou com programação produzida desde 1990 pela Media Access Group, o Descriptive Video Service. Esse serviço é patrocinado por doações e fundações, produzindo cerca de 6 a 10 horas de programação com audiodescrição por semana, que fica disponível em 50% das residências nos Estados Unidos. Estas transmissões são possíveis devido à presença de um canal secundário de áudio, a tecla SAP (secondary audio programme). Na televisão brasileira, já foram apresentados comerciais da Natura com audiodescrição feita pela Iguale, o programa Assim Vivemos no Canal Brasil e o documentário Vida em Movimento de Marta Gil sobre a inclusão das pessoas com deficiência, exibido pela TV Cultura.

A evolução da televisão digital e outras tecnologias do gênero mudarão o modo como as pessoas irão acessar a informação. À medida que as tecnologias vão abrindo novas portas, outras poderão se fechar para as pessoas cegas e com baixa visão, caso não sejam dados passos que assegurem meios alternativos de navegação e a acessibilidade nesse novo ambiente. A figura do telespectador passivo está fadada a desaparecer. Em breve a televisão disponibilizará serviços interativos, educacionais, comerciais, e de entretenimento para lares, salas de aula, locais de trabalho e a acessibilidade para todos é um fator que precisa ser levado em consideração.

No Brasil, a audiodescrição já era para ter sido implementada na televisão, desde junho de 2008, com duas horas de programação audiodescritas por dia, entretanto o recurso foi suspenso pelo Ministério das Comunicações, colocado em consultas públicas e novas portarias foram baixadas. Uma verdadeira saga, que culminou com a publicação da portaria 188 de março de 2010, que prevê a transmissão de 2 horas semanais de programas audiodescritos, a partir de julho de 2011, já na TV digital, diminuindo drasticamente as possibilidades de acesso à cultura e informação.

Os audiodescritores precisam de um curso de formação específico sobre o recurso que contemple informações sobre a deficiência visual, definição, histórico e princípios da audiodescrição, noções de sumarização, conhecimento sobre recursos técnicos, locução e, principalmente, atividades práticas. Precisam, também, assistir e ter informações sobre os espetáculos e eventos que serão audiodescritos, antes de fazer a audiodescrição, para se familiarizar com o tema, personagens, figurino, vocabulário específico, autor e cenários. Outro aspecto importante é a elaboração do roteiro para audiodescrição com tudo o que será inserido entre os diálogos, que, no teatro, costuma ser aprovado pelo diretor da peça, o qual verifica a coerência e fidelidade ao tema e linguagem da obra. As informações sobre as cenas não podem expressar opiniões pessoais do audiodescritor. É, portanto, um trabalho minucioso que exige tempo, dedicação, objetividade e, acima de tudo, preparação.

Os feedbacks das pessoas com deficiência visual que já experimentaram o recurso comprovam a sua relevância e eficácia – há um aumento significativo do entendimento, o que contribui para a inclusão social e cultural destas pessoas, ampliando, e muito, suas opções de lazer e cultura.

Lívia Maria Villela de Mello Motta é doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC de São Paulo e atua tanto na área de formação de professores para a escola inclusiva, como na área de inclusão cultural das pessoas com deficiência visual, com foco na formação de audidodescritores para teatro, cinema, TV e outros espetáculos. Foi responsável pela preparação dos audiodescritores da primeira peça brasileira com audiodescrição no Brasil, no Teatro Vivo, e continua formando profissionais para atuar neste segmento, além de participar ativamente de atividades para divulgação, normatização e implementação do recurso na TV.

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