Ally e Ryan

Ally e Ryan

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A CORDE e o CONADE na organização administrativa do Estado Brasileiro.


Mário Cléber Martins Lanna Júnior.

Capítulo 5.

Até o final da década de 1980, as ações do Estado brasileiro em relação às pessoas com deficiência eram esporádicas, sem continuidade, desarticuladas e centradas na educação. Não havia políticas públicas amplas e abrangentes, conforme relatado no Capítulo 1 deste livro.

O interesse público em relação aos direitos das pessoas com deficiência foi reconhecido na estrutura do Estado brasileiro com a criação da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora (termo usado na época) de Deficiência (CORDE), em 1986, e da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, em 1989. A partir de então, os interesses dessas pessoas ganharam cada vez mais espaço na estrutura federal. Houve fluxos e refluxos nesse processo. Desde 2003, a política para a pessoa com deficiência está vinculada diretamente à Presidência da República, por meio da pasta de Direitos Humanos. Em outubro de 2009, a CORDE foi elevada à Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Mais recentemente, em agosto de 2010, alcançou o status de Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.

De coordenadoria a secretaria.

A criação da CORDE significou um passo importante na ação governamental voltada para os direitos da pessoa com deficiência. Até então, o Estado brasileiro promovia apenas ações setoriais, como as campanhas voltadas para a educação especial que remontam à década de 1950: a Campanha Nacional de Educação do Surdo Brasileiro (CESB), instituída através do Decreto n° 42.728, de 3 de dezembro de 1957; a Campanha Nacional de Educação e Reabilitação dos Deficientes Visuais, lançada em 1958 e renomeada Campanha Nacional de Educação dos Cegos (CNEC), através do Decreto n° 44.138, de 1° de agosto de 1958; e, por último, a Campanha Nacional de Educação e Reabilitação de Deficientes Mentais (Cademe), instituída através do Decreto n° 48.921, de 22 de setembro de 1960.

Todas as campanhas já haviam sido extintas em 1964 e, embora não duradouras, ensejaram o debate sobre a educação especial no Brasil, que desencadeou, em 1973, a criação do Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp), órgão que concentrou as discussões sobre a pessoa com deficiência no Brasil por alguns anos. Na década de 1980, por sugestão do Comitê Nacional para Educação Especial, quando o movimento buscava conquistar outros direitos além da educação, se constituiu, na estrutura governamental, um órgão responsável por coordenar todas as ações voltadas para a pessoa com deficiência: a CORDE.

Comitê Nacional para Educação Especial.

Foi entregue pelo Ministro da Educação, Marco Maciel, ao Presidente José Sarney, em 1985, uma proposta de estudo sobre a educação especial no Brasil para detectar problemas e buscar soluções. O Presidente da República, por meio do Decreto n° 91.872, de 4 de novembro de 1985, instituiu o Comitê Nacional para Educação Especial, com o objetivo de traçar a política de ação conjunta para aprimorar a educação especial e integrar à sociedade as pessoas com deficiência, com problemas de conduta e superdotadas.

O Comitê Nacional para Educação Especial foi inspirado no Painel Kennedy de Combate ao Retardo Mental (A Proposed Program for National Action to Combat Mental Retardation), criado em 1962, nos Estados Unidos da América, com o envolvimento de diversos setores da sociedade, e que previa medidas de prevenção, tratamento e educação direcionadas a pessoas com deficiência intelectual.

No Brasil, o Comitê foi criado com a finalidade de realizar diagnósticos, estabelecer prioridades e propor meios que promovessem a universalização do atendimento às pessoas com deficiência, superdotados e com problemas de conduta, nas áreas de saúde, educação, trabalho e integração social. Após discussão na Terceira Reunião Plenária, decidiu-se que o Comitê não tinha competência para discutir sobre superdotados e pessoas com problemas de conduta, já que os membros eram ligados à questão da deficiência. Isso refletiu no Plano de Ação Conjunto para Integração da Pessoa Deficiente, documento final do Comitê, que não contemplou pessoas com desvio de conduta e superdotados na maioria das ações de âmbito geral definidas (cf. BRASIL, 8 maio 1986e). A proposta inicial de composição do Comitê, definida pelo Ministro da Educação, previa 44 membros (QUADRO 5).

É importante observar que o Comitê era majoritariamente composto por representantes ministeriais ou por indicados do Ministro da Educação, evidenciando a ênfase na educação em detrimento de outras áreas, quando se tratava de políticas públicas voltadas para as pessoas com deficiência. Destaque-se, ainda, a não indicação de representante de uma organização nacional de cegos, o que, provavelmente, ocorreu porque o movimento dos cegos era fragmentado em várias organizações que reivindicavam a representação nacional, conforme discutido no Capítulo 3. Os cegos foram contemplados na categoria das pessoas de notório saber e, na pessoa de Aldo Linhares Sobrinho, com uma representação generalista das “organizações nacionais de deficientes visuais”.

O Comitê Nacional para Educação Especial era composto pelos seguintes membros: Adilson Ventura, Aldo Linhares Sobrinho, Álvaro José de Oliveira, Ana Zaíra Bitencourt Moura, Ana Maria Oliveira Filgueiras, Benício Tavares da Cunha Mello, Carlos Chagas Filho, Cleonice Floriano Haesbaert, Conceição de Maria Soares Santos, Dorina de Gouvêa Nowill, Elpídio Araújo Néris, Fernando Amorim, Hélio Saul Ramos Barreto, Hilton Rocha, João Carlos Carreira Alves, José Carlos Cabral de Almeida, Lenita de Oliveira Vianna, Lídia José Sant’anna Rosas, Lizair de Moraes Guarino, Manuel da Paixão Santos Faustino, Marcos de Carvalho Candau, Marli Correia da Costa, Maria Augusta de Aguiar Ferraz Temponi, Maria Helena Gomes dos Santos, Maria Helena Novaes Mira, Maria Irene Alves Ferreira, Maria Paula Teperino, Marinanda de Carvalho Silva, Mauro Spinelli, Nilza de Lima Rizzo, Olívia da Silva Pereira, Otília Pompeu de Souza Brasil, Roberto Costa de Abreu Sodré, Rosângela Berman Bieler, Rute Maria Castro Costa, Sandra Cavalcanti, Sarah outo César, Solange Amaral, Stanislau Krysnki, Sonia Botelho Junqueira, Tânia Regina Pereira Rodrigues, Teresa Costa d’Amaral, Terezinha de Jesus Costa Vinhaes, Vanilton Senatori, Vera Silvia Dutra Cançado, Zoé Noronha Chagas Freitas.

A partir da listagem nominal dos membros observa-se que o Comitê contou com 46 integrantes e não com os 44 inicialmente planejados. O Comitê sofreu alterações em seus membros durante o período em que trabalhou, sobretudo nos nomes que representaram os ministérios. A secretária executiva do Comitê foi Lizair Guarino, à época diretora-geral do Cenesp. Foram realizadas reuniões plenárias periódicas e 16 reuniões da Comissão Executiva, entre janeiro e junho de 1986.

Nas primeiras reuniões, o Comitê teve dificuldades em encontrar dados estatísticos sobre a incidência da deficiência no Brasil. Não era possível quantificar o público-alvo do Comitê. Essa dificuldade converteu-se em uma das ações propostas, que recomendava a realização de um censo sobre a deficiência no Brasil. Para prosseguir com os trabalhos, o Comitê decidiu utilizar a média de incidência da deficiência calculada pela ONU, que previa, aproximadamente, 10% da população mundial com algum tipo de deficiência para países em tempo de paz e estabelecia a proporcionalidade por deficiência (QUADRO 6).

Foi consenso entre os membros do Comitê Nacional para Educação Especial que um dos principais problemas para a execução de políticas públicas voltadas para a pessoa com deficiência era a desarticulação entre as várias esferas governamentais envolvidas. O ponto crítico das discussões do Comitê era a forma de gerir, na estrutura do governo federal, as ações necessárias ao atendimento da pessoa com deficiência, como fica claro no trecho a seguir:

A maior dificuldade encontrada foi a falta de dados, inclusive de informação das áreas governamentais quanto a recursos disponíveis. […] a Comissão procedeu a uma análise do que vem sendo realizado na área do governo e observou que além de falta de dados há uma falta de entrosamento nas áreas governamentais, não só interministerial, mas às vezes intraministerial. Exemplo concreto é o Ministério da Previdência e Assistência Social, que tem três órgãos que atuam diretamente com o problema: a Legião Brasileira de Assistência, o Instituto Nacional de Previdência Social e o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social e não há um entrosamento entre esses órgãos.

Os ministérios diretamente envolvidos com a questão da deficiência eram os da Educação, da Previdência e Assistência Social, da Saúde e do Trabalho, e a argumentação recorrente nas discussões do Comitê defendia a necessidade de expandir o tema a todas as áreas do governo com ações articuladas. Essa preocupação pode ser percebida na intervenção feita por Adilson Ventura durante a segunda reunião plenária do Comitê, na qual a centralização das ações no Ministério da Educação foi destacada:

Adilson Ventura pede a palavra para dizer que, verificando as atas das reuniões anteriores, os ministérios envolvidos não participaram e como sempre o Ministério da Educação assume sozinho o problema da deficiência no País.

A solução apontada pelo Comitê Nacional para Educação Especial, desde as reuniões iniciais, era a criação de um órgão de coordenação interministerial, ligado à Presidência da República ou à Casa Civil, que fosse responsável por articular as políticas para a pessoa com deficiência entre as várias áreas do governo federal. Era o início da idealização da CORDE. A ideia de criação de uma coordenação nacional não era totalmente nova. Os documentos gerados nos debates nacionais e internacionais do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, que subsidiaram os estudos do Comitê, já sugeriam a necessidade de criação de uma coordenação nacional para as ações direcionadas às pessoas com deficiência.

As discussões realizadas no Comitê Nacional para Educação Especial consolidaram-se no Plano Nacional de Ação Conjunta para Integração da Pessoa Deficiente. A Política Nacional de Ação Conjunta, definida no Plano, tinha duas linhas principais: “uma, no sentido de pormenorizar e especificar ações a serem desenvolvidas; outra, no sentido de propor a criação de uma coordenação executiva, destinada a viabilizar o plano”. O documento também sugeriu a transformação do Cenesp em Secretaria de Educação Especial (Seesp), com o objetivo de implantar as ações do Plano Nacional de Ação Conjunta no âmbito do Ministério da Educação. Isso se efetivou em novembro de 1986, com a criação da Seesp.

A sugestão de criação da coordenação ganhou destaque no Plano, que apresentou uma proposta de estruturação do órgão:

A criação de uma coordenação nacional, para planejar, estimular e fiscalizar as ações dos diferentes órgãos governamentais permitia o desenvolvimento do Plano Nacional de Ação Conjunta e a identificação dos recursos para que se passe da teoria à prática.

Em suma, o Decreto presidencial que instituiu o Comitê lhe atribuiu a elaboração de ações que deveriam ser desenvolvidas pelo governo federal; entretanto, os problemas de execução se sobrepuseram. As 89 ações do Plano Nacional foram tratadas no documento como de “caráter eminentemente prático”, reforçando a importância dada pelo Comitê à necessidade de criação de um órgão de coordenação interministerial, que deveria ser ligado à Presidência da República e ter como objetivo “coordenar as ações governamentais do Plano Nacional de Ação Conjunta para integração das pessoas portadoras de deficiências, pessoas com problemas de conduta e pessoas superdotadas”. A estrutura previa a existência de um coordenador nacional, nomeado pelo Presidente da República; de subcoordenadores, representantes dos ministérios diretamente envolvidos (Educação, Previdência Social e Assistência, Saúde e Trabalho); e a criação de um Conselho Consultivo.

Nas reuniões do Comitê houve várias discussões sobre a composição do Conselho Consultivo. A principal proposta colocada em debate previa a transformação do Comitê no Conselho do novo órgão de coordenação. A proposta não se efetivou no Plano Nacional de Ação Conjunta, documento final do Comitê.

Criação da CORDE.

O trabalho do Comitê Nacional para a Educação Especial findou-se com a publicação do Plano Nacional de Ação Conjunta para a Integração da Pessoa com Deficiência, em 1° de julho de 1986. A sugestão de criação da CORDE foi acatada pelo Presidente José Sarney e operacionalizada por meio do Decreto n° 93.481, de 29 de outubro de 1986. À publicação do decreto antecedeu uma exposição de motivos assinada pelos seguintes ministros: Jorge Bornhausen, da Educação; Marco Maciel, da Casa Civil; Almir Pazzianotto, do Trabalho; Roberto Santos, da Saúde; Raphael Magalhães, da Previdência e Assistência Social; e, por último, Saulo Ramos, Consultor-Geral da República. A exposição de motivos recorreu à legislação vigente no país e, sobretudo, aos argumentos do Comitê Nacional de Educação Especial:

Apesar das dificuldades, hoje intransponíveis, que impedem a realização de um diagnóstico profundo do problema, podemos apontar alguns aspectos da sua realidade, tais como: inexistência de sistema

nacional que promova a prevenção de deficiências; atendimento apenas de pequena, reduzida, parcela da população portadora de deficiência quanto à educação, saúde, previdência, assistência social e trabalho; concentração dos poucos recursos e mecanismo de atendimento nos principais centros urbanos; ausência de integração profissional e social da pessoa portadora de deficiência; carência de profissionais habilitados, em número bastante, para o atendimento dessas pessoas; falta de integração entre as várias ações governamentais que tratam da situação-problema em tela.

Os argumentos apresentados pelos Ministros foram suficientes para que o Presidente criasse a CORDE para resolver a “situação-problema”, tanto que sua atribuição principal era funcionar como órgão de articulação interministerial, coordenando as áreas envolvidas. A função do novo órgão, criado no Gabinete Civil da Presidência da República, era elaborar os planos e programas governamentais voltados para a integração social da pessoa com deficiência.

A primeira gestão da CORDE, encabeçada por Teresa Costa d’Amaral, ocupou-se, principalmente, da estruturação do órgão e da criação de um arcabouço legal que possibilitasse a promoção e defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Embora a CORDE tenha sido criada por sugestão do Comitê Nacional de Educação Especial, as outras ações recomendadas por ele não puderam ser encaminhadas por falta de legislação. Era necessária a criação de lei que possibilitasse a efetiva realização das ações e o próprio trabalho da CORDE. Em 1986, em meio ao processo de instauração da Assembleia Nacional Constituinte, a criação de nova lei não era apropriada, sobretudo porque ela poderia não ser recepcionada pela nova Carta Constitucional.

A efetivação da atuação da CORDE se materializou apenas em 1989, com a Lei n° 7.853, que dispõe sobre a integração social das pessoas com deficiência, sobre as competências da CORDE e institui tutela jurisdicional dos interesses dessas pessoas. A lei estabeleceu as responsabilidades do Poder Público para o pleno exercício dos direitos básicos das pessoas com deficiência, inclusive definindo aspectos específicos dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade.

A Lei n° 7.853 também definiu que a CORDE deveria elaborar seus planos, programas e projetos considerando a Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, que, no entanto, somente seria instituída por meio do Decreto n° 914, de 6 de setembro de 1993, cujo princípio era a ação conjunta do Estado e da sociedade civil na criação de mecanismos que assegurassem a plena integração da pessoa com deficiência em todos os aspectos da vida em sociedade. A Lei n° 7.853 foi, posteriormente, regulamentada pelo Decreto n° 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que também alterou a Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência.

Foram coordenadoras da CORDE: Teresa Costa d’Amaral (1986-1990); Maria de Lourdes Canziani (1990-1997); Tânia Maria Silva de Almeida (1997-2000); Ismaelita Maria Alves de Lima (2000-2002); Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior, a primeira pessoa com deficiência a assumir esse cargo (a partir de setembro de 2002).

Durante a gestão de Maria de Lourdes Canziani, que teve início em 1990, a CORDE fomentou fortemente espaços de debate sobre o tema da deficiência apoiando vários seminários, congressos e encontros realizados no Brasil – com destaque para as Câmaras Técnicas e os DEF-Rio – realizados em 1992 e 1995. Os DEFs-Rio foram encontros internacionais, com participação de militantes, com deficiência ou não, profissionais de saúde, políticos, dentre outros, para discutir questões relacionadas à inclusão social e aos direitos da pessoa com deficiência. Esses eventos foram organizados por pessoas com deficiência, por meio de organizações representativas, mas contaram com o apoio, inclusive financeiro, da CORDE. (tabela 2.5).

As Câmaras Técnicas da CORDE, iniciadas na década de 1990, são espaços de discussão e sistematização de ações com o objetivo de subsidiar a formulação de programas a serem desenvolvidos no Brasil, versando sobre temas como acessibilidade, trabalho, saúde, reabilitação, educação, dentre outros. As Câmaras Técnicas da CORDE têm uma metodologia que propicia a participação das próprias pessoas com deficiência em conjunto com técnicos e representantes do governo. Em alguns casos, há a participação de técnicos estrangeiros e representantes de organizações internacionais. Os resultados são sistematizados em relatórios que, geralmente, contam com a situação atual do tema estudado, a situação desejada para o Brasil e as linhas de ação a serem desenvolvidas.

Embora tenha sido criada na estrutura da Presidência da República, a CORDE transitou por diversos ministérios e secretarias durante toda a sua trajetória. Em 1987, a CORDE foi para a Secretaria de Planejamento e Coordenação da Presidência – Seplan (Decreto n° 94.934, de 11 de junho 1987). Em 1988, sofreu duas transferências: a primeira para o Gabinete da Secretaria da Administração Pública – Sedap (Decreto n° 95.816, de 10 de março de 1988), e a segunda, para o Ministério da Habitação e Bem-Estar Social – MBES (Decreto n° 96.634, de 2 de setembro de 1988). Em 1989, foi transferida para o Ministério do Interior – MINTER (Lei n° 7.739, de 16 de março de 1989). Em 1990, vinculou-se ao Ministério da Ação Social – MAS (Decreto n° 99.244, de 10 de maio de 1990). Em 1992, sofreu nova mudança para o Ministério do Bem-Estar Social (Lei n° 8.490, de 19 de novembro de 1992).

Em 1995, com a reforma administrativa empreendida pelo governo Fernando Henrique Cardoso, a CORDE foi transferida do MBES para a Secretaria dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (Medida Provisória n° 891, de 1° de janeiro de 1995). Em seguida, ficou vinculada à Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (1997) do Ministério da Justiça e à Secretaria de Estado de Direitos Humanos (1999). Somente em 2003, o governo Lula empreendeu nova reforma administrativa e a CORDE foi definida com um órgão de assessoramento vinculado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR). Em 13 de outubro de 2009, o Decreto n° 6.980 transformou a CORDE em Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que conta com um Departamento de Políticas Temáticas dos Direitos da Pessoa com Deficiência em sua estrutura administrativa. A criação da Subsecretaria significa, do ponto de vista da estrutura do governo federal, aumento de status do órgão.

Já em 2010, o Decreto 7.256 aprovou a Estrutura Regimental da Secretaria de Direitos Humanos e criou a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. A nova Secretaria é o órgão da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) responsável pela articulação e coordenação das políticas públicas voltadas para as pessoas com deficiência. Com a estrutura maior e com o novo status, o órgão gestor federal de coordenação e articulação das ações de promoção, defesa e garantia de direitos humanos das pessoas com deficiência tem mais alcance, interlocução e capacidade de dar respostas às novas demandas do segmento.

Na qualidade de Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, sua chefia passou a poder se relacionar diretamente com sua contraparte de mesmo nível hierárquico nos demais ministérios e secretarias especiais do governo federal. O principal resultado da elevação da CORDE à condição de secretaria – tornando-a parte do terceiro escalão do governo federal, abaixo apenas dos ministros e do presidente da República – é a maior capacidade na articulação, demanda e acompanhamento das políticas públicas do Poder Executivo federal brasileiro.

Ter a coordenação da política para inclusão da pessoa com deficiência na pasta dos Direitos Humanos é um reconhecimento de que esta inclusão é, antes de mais nada, um direito conquistado por este grupo a partir de muita luta. Em 2009, a OEA reconheceu que poucos são os países que vão além da ação reabilitatória e assistencialista – considerando ainda que alguns não apresentam nenhuma política pública voltada para este grupo. O Brasil é destaque internacional por coordenar medidas administrativas, legislativas, judiciais e políticas públicas, com o objetivo de assegurar os direitos fundamentais desta parcela da população.

Criação do CONADE.

Uma das inovações resultantes da Constituição de 1988 foi a maior abertura conferida à participação popular na elaboração, gestão e fiscalização de políticas públicas. Um dos espaços de participação democrática são os conselhos, que devem apresentar uma configuração paritária entre poder público e a sociedade civil.

Na década de 1990, foram criados, nas três esferas de Governo, diversos conselhos, dentre os quais os conselhos de defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Todavia, a ideia de se organizar sob a forma de conselhos não era de todo nova para o movimento. Em 1981, durante o 2º Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, lideranças do movimento decidiram pela organização de conselhos de atenção às pessoas com deficiência. Tais conselhos não tinham um peso político decisivo, pois ainda vigorava a ditadura militar, mas foram os precursores de alguns dos atuais conselhos estaduais e municipais de defesa dos direitos desse grupo social.

O documento elaborado pelo Comitê para a Educação Especial também previa a criação de um Conselho Consultivo formado por pessoas com deficiência, instituições e Governo, o que se efetivou por meio do Decreto n° 94.806, de 31 de agosto de 1987. O Conselho Consultivo foi constituído por membros da Febec, da Feneis, da Onedef, representando as pessoas com deficiência; e da Fenapaes, Fenasp e Federação Brasileira das Instituições de Excepcionais - Febiex, correspondentes às instituições para pessoas com deficiência. Representantes de vários ministérios também integravam o Conselho. O Conselho Consultivo da CORDE passou por reestruturações durante a década de 1990, sobretudo com mudanças na composição dos membros.

Como a CORDE era, inicialmente, subordinada diretamente à Presidência da República, que comportava constitucionalmente apenas dois conselhos deliberativos (o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional), pôde contar apenas com um Conselho Consultivo. As atribuições do Conselho eram opinar sobre o desenvolvimento da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, apresentar sugestões e responder a consultas. Em 1999, porém, esse conselho foi abolido e, finalmente, criou-se um Conselho Deliberativo, o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência – CONADE (Decreto n° 3.076, de 1° de junho de 1999). A presidência do Colegiado cabia ao Secretário Nacional dos Direitos Humanos e, em 2002, ocorreu a primeira eleição na qual as entidades do movimento puderam se candidatar para o cargo. Foi eleito o representante da União Brasileira de Cegos, professor Adilson Ventura, o qual se tornou a primeira pessoa com deficiência a presidir o CONADE.

O CONADE foi criado como órgão superior de deliberação coletiva com a atribuição principal de garantir a implementação da Política Nacional de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Seu decreto de criação determinou que o órgão fosse constituído paritariamente por representantes do Poder Público e da sociedade civil, ficando sob a responsabilidade do Ministro de Estado da Justiça disciplinar o funcionamento do órgão.

Definiu-se que as competências do CONADE seriam: zelar pela implantação da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência; acompanhar o planejamento e avaliar a execução das políticas setoriais relativas à pessoa portadora de deficiência; zelar pela efetivação do sistema descentralizado e participativo de defesa dos direitos da pessoa portadora de deficiência; propor a elaboração de estudos e pesquisas; propor e incentivar a realização de campanhas visando à prevenção de deficiências e à promoção dos direitos da pessoa portadora de deficiência; aprovar o plano de ação anual da CORDE; entre outras.

Em 2003, o CONADE deixou a estrutura administrativa do Ministério da Justiça e passou a ser órgão colegiado da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Suas competências, no entanto, continuaram a ser as mesmas estabelecidas pelo Decreto n° 3.298, de 1999. Nos últmios anos, o Conade foi responsável por duas Conferências Nacionais dos Direitos da Pessoa com Deficiência e quatro Encontros Nacionais de Conselhos de Direitos das Pessoas com Deficiência e por capitanear a Campanha “Acessibilidade – Siga essa Idéia”.

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É fato que, após a ditadura militar, o Estado brasileiro vem ampliando seu compromisso com a inclusão e a garantia de direitos de parcelas cada vez maiores da população brasileira, tais como pessoas com deficiência, negros, índios, mulheres, homossexuais, crianças e adolescentes. Populações historicamente marginalizadas buscam assumir papel central na elaboração e no monitoramento das políticas públicas, inclusive pela ascensão a cargos legislativos, tanto no nível municipal quanto estadual e federal.

A criação do Prêmio Direitos Humanos, da categoria “Garantia dos Direitos das Pessoas com Deficiência” é outra evidência da relevância que o tema adquiriu na perspectiva do Estado. O Prêmio, criado em 1995, é concedido pelo governo federal, por meio da Secretaria de Direitos Humanos, a pessoas e organizações cujos trabalhos em prol dos Direitos Humanos sejam merecedores de reconhecimento e destaque por toda a sociedade.

Entre os agraciados pelo Prêmio, estão Dorina Nowill (1997), Associação de Amigos do Autista – AMA-SP (1998), Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação – ABBR–RJ (1999), Sarah Couto César (2000), Olívia Pereira (post mortem, 2001), Ana Rita de Paula (2002), Associação Pestalozzi de Niterói (2003), Marilene Ribeiro dos Santos (2003), Associação dos Deficientes Físicos de Alagoas (2004), Adilson Ventura (2006), Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase - Morhan (2007), Associação de Assistência à Criança Deficiente da Amazônia (ACDA/PA) (2007), Gerônimo Siqueira (in memoriam, 2007), professora Maria de Lourdes Canziani (2008), Secretaria Estadual para Inclusão da Pessoa com Deficiência – PI (2008), Rosângela Berman Bieler (2009), entre outros.

Os primeiros grandes eventos patrocinados pela CORDE.

Fórum Global e DEF-Rio 92

O ano de 1992 marcou o encerramento da Década Internacional das Pessoas com Deficiência (ONU-1983/1992). No Brasil, dentre os eventos relacionados, destaca-se a participação do movimento das pessoas com deficiência no Fórum Global 92 e no DEF-Rio 92 – Encontros Ibero-Americanos de Portadores de Deficiência. Os eventos aconteceram em um contexto de grande visibilidade internacional, pois foi nesse ano que a cidade do Rio de Janeiro sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92).

O Fórum Global 92 foi a instância de participação da sociedade civil na ECO-92. Com o propósito de discutir a relação entre deficiência e meio ambiente, o Centro de Vida Independente do Rio de Janeiro (CVI-RIO), juntamente com o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM) e a Organização Mundial de Pessoas com Deficiência (DPI) realizaram, com o patrocínio da CORDE, o 1° Simpósio Internacional sobre Meio Ambiente e Deficiência Fórum Global 92.

O DEF-Rio 92 – Encontros Ibero-Americanos de Portadores de Deficiência foi uma iniciativa do CVI-Rio e da Feneis e contou com apoio dos governos federal, estadual e municipal, além do patrocínio da CORDE, Banerj, Organização Mundial de Pessoas com Deficiência, Fundação ONCE e do Real Patronato de Prevención y de Atención a Personas con Minusvalias, ambos da Espanha.

Realizado entre 3 e 8 de novembro no Centro de Convenções do Othon Palace Hotel, na praia de Copacabana, o evento contou com a participação de cerca de 600 pessoas. O DEF-Rio 92 se desdobrou em cinco eventos, quais sejam: VII Seminário Ibero-Americano de Informação e Deficiência, 1° Encontro Ibero-Americano de Mulheres com Deficiência, Avaliação Regional da Década das Nações Unidas, 7° Seminário Ibero-Americano sobre Deficiência Auditiva e 1° Simpósio Ibero-Americano de Vida Independente.

DEF-Rio 95

Em 1995, o CVI-Rio, em parceria com outras entidades de pessoas com deficiência tais como APCB, Feneis e Sociedade Brasileira dos Ostomizados, organizou uma nova edição do DEF, entre os dias 23 e 26 de novembro de 1995, no Hotel Intercontinental, no Rio de Janeiro. O DEF-Rio 95 contou com o apoio de diversas organizações e foi patrocinado pela CORDE, Seesp, Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro e Riotur.

O DEF-Rio 95 contou com a presença de cerca de 4.000 participantes, entre militantes, profissionais da área, usuários, familiares, imprensa e público em geral.

Fontes: DEF-Rio 92, 1992. ENCONTRO discute..., 1995.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O Movimento das Pessoas com Deficiência e a Assembleia Nacional Constituinte.

Mário Cléber Martins Lanna Júnior.

Capítulo 4.

A Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi um importante acontecimento para o movimento das pessoas com deficiência, em decorrência da comoção e da mobilização social diante da expectativa de uma nova Constituição. A história da República brasileira foi marcada por dificuldades para implementar a democracia. A República oscilou entre períodos liberais na Primeira República (1889-1930) com instável experiência democrática (1945-1964) e períodos de regimes de exceção, durante as ditaduras de Getúlio Vargas (1930-1945) e a ditadura militar (1964-1985).

Após o fim da ditadura militar, criou-se uma grande expectativa no Brasil para a consolidação de um sistema democrático de governo efetivo e duradouro e, para isso, iniciou-se o processo de elaboração de uma nova Constituição. Todas as esperanças dos brasileiros e das brasileiras que sofreram por 21 anos a repressão do Estado comandado pelos militares foram depositadas na nova Carta Magna. O movimento das pessoas com deficiência também participou desse processo, na busca pela inserção de suas demandas no texto constitucional.

A Emenda Constitucional n° 26, de 27 de novembro de 1985, atribuiu poderes constituintes aos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e determinou sua reunião, unicameralmente, em Assembleia Nacional Constituinte (ANC), a partir de 1° de fevereiro de 1987. Um anteprojeto de Constituição foi elaborado pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, criada pelo Poder Executivo em 1986 e que ficou conhecida como "Comissão Afonso Arinos", por ser dirigida pelo jurista e ex-deputado federal Afonso Arinos de Melo Franco.

O texto constitucional foi construído com base nos trabalhos de 24 subcomissões que compunham nove comissões temáticas. O Regimento Interno da ANC determinou, dentre outras medidas, o recebimento de sugestões de órgãos legislativos subnacionais, de entidades associativas e de tribunais, além de parlamentares; a realização de audiências públicas pelas subcomissões para ouvir a sociedade; a apreciação de emendas populares respaldadas em pelo menos 30 mil assinaturas; e a obrigatoriedade do voto nominal nas matérias constitucionais.

Os trabalhos das comissões foram intensos e, entre os dias 7 de abril e 25 de maio de 1987, ocorreram mais de 200 audiências públicas realizadas com as subcomissões. Tanto os resultados das discussões nas subcomissões quanto as emendas populares foram encaminhados à Comissão de Sistematização. Em 24 de novembro, o Projeto aprovado pela Comissão de Sistematização foi entregue ao presidente da ANC. Entre fevereiro e setembro de 1988, o projeto foi discutido, quando representantes das entidades da sociedade civil defenderam as emendas populares. O plenário aprovou a redação final do texto em 22 de setembro e, finalmente, em 5 de outubro, foi promulgada a atual Constituição da República Federativa do Brasil, que, pela abertura dada à participação popular no processo de sua elaboração – algo inédito no histórico constitucional do país –, recebeu a adjetivação de "Constituição Cidadã".

Até esse momento da história, em termos constitucionais, a única referência aos direitos das pessoas com deficiência era a Emenda n° 12, de 1978, conhecida como "Emenda Thales Ramalho", que no seu artigo único define:. "É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante: I. educação especial e gratuita; II. assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do país; III. proibição de discriminação, inclusive quanto a admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários; IV. possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos.

Segundo Messias Tavares, militante da FCD e coordenador da Onedef na época da Constituinte, esta emenda foi gestada em Pernambuco, em discussões entre a Associação de Deficientes Motores de Pernambuco (ADM), a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD) e o deputado Thales Ramalho, que possuía uma deficiência física por sequela de um acidente vascular cerebral.

As pessoas com deficiência participaram ativamente das discussões da ANC. Assuntos relacionados a esse grupo foram tratados na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, subordinada à Comissão Temática da Ordem Social, que realizou oito audiências públicas, sendo três destinadas a discutir questões atinentes às pessoas com deficiência: a audiência do dia 27 de abril, "Deficientes Mentais; Alcoólatras; Deficientes Auditivos"; a do dia 30 de abril, "Deficientes Físicos; Ostomizados; Hansenianos; Talassêmicos" e a do dia 4 de maio, "Deficientes Visuais; Hemofílicos; Negros".

A articulação do movimento das pessoas com deficiência para participar da ANC ocorreu de duas maneiras: em 1986, por meio do ciclo de encontros "A Constituinte e os Portadores de Deficiência", realizado em várias capitais brasileiras pelo Ministério da Cultura entre 1986 e 1987.

Os debates no âmbito nacional sobre a nova Constituição tiveram início já em 1986, mesmo antes da instalação da ANC. Um importante fator que fomentou essas discussões foi a presença de Paulo Roberto Guimarães, militante do movimento das pessoas com deficiência desde o final da década de 1970 e membro da Comissão Organizadora do 1° Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, realizado em 1980, no Ministério da Cultura. Em 1986, Paulo Roberto era responsável pelo "Programa de Cultura e Portadores de Deficiência" e organizou um ciclo de encontros, durante o segundo semestre de 1986, em 11 capitais brasileiras. Paulo Roberto Guimarães foi o cidadão "não parlamentar" que mais pronunciamentos fez durante as audiências públicas na Assembleia Nacional Constituinte.

Durante a última audiência da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, Paulo Roberto falou logo depois do ex-governador Leonel Brizola: "É com muita alegria e admiração rara que vejo que Vossa Excelência também se preocupa com os não indivíduos, os exilados, os velhos. Sua Excelência também se preocupa com os indivíduos, os exilados internos, os apátridas. Vossa Excelência não é mais um exilado, mas muitos ainda o são. Os negros e os velhos são exilados neste país. Nós mesmos somos exilados dos banheiros, das escolas das instituições, dos palácios, da nossa própria casa. Somos exilados internos deste país, e o Sr. Governador percebeu isso. Alias, ele é positivamente esperto por que percebe a realidade, justamente porque viveu a lógica dos que perderam a cidadania. Somos os sem sujeito, histórica, política e culturalmente deserdados, e vamos, com certeza, herdar cultura. (...) A soberania de uma nação reside no fato de ela poder respeitar todos seus integrantes. Aí sim, ela será forte. Como pode haver uma nação forte se seus indivíduos são mutilados em progressão geométrica, enquanto o assistencialismo e o paternalismo auxiliam em progressão aritmética?"

Na mesma ocasião, Paulo Roberto concluiu:

"Senhor Governador, estou encantado com as suas palavras. E acho que as autoridades brasileiras precisam parar de falar que os nossos problemas são de saúde, de educação e, quando muito, de transporte. Na verdade, o nosso grande problema é de direito, de cidadania, de existência. Estamos sendo massacrados, quem não sabe disso? Os pobres estão sendo massacrados. Desprezam e massacram toda a forma de pobreza, a deficiência, a velhice, o fato de ser menor e não ser criança. Este país está sendo massacrado, completamente massacrado."

Paulo Roberto publicou, em 1990, o livro "Cultura, Diferença e Deficiência", coletânea de artigos e pronunciamentos.

Ele recorda que naquela época não existia CORDE ou qualquer outro órgão gestor da política da pessoa com deficiência. "Durante a Constituinte, não existia nada; tínhamos que começar do zero. Nessa época, quem elaborava a política do governo para pessoas com deficiência era o Ministério da Educação e o da Cultura". Ainda segundo Paulo Roberto, o trabalho da Educação ainda era muito voltado às associações filantrópicas e assistenciais. "A primeira vez que se teve um trabalho do ponto de vista da garantia dos direitos das pessoas com deficiência foi via Ministério da Cultura".

O ciclo promoveu encontros em São Paulo – em duas ocasiões –, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Recife, Florianópolis, Belém, Curitiba e Goiânia.

Participaram de todos os debates Cândido Pinto de Melo, do MDPD; Luzimar Alvino Sombra, assessor jurídico do Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp); e Paulo Roberto Guimarães, coordenador do Programa de Cultura e Portadores de Deficiência do Ministério da Cultura. O objetivo com o ciclo de encontros era estimular o debate e articular as pessoas com deficiência para reivindicarem direitos e garanti-los no texto constitucional. Após o término dos encontros, o Ministério da Cultura continuou a auxiliar o movimento das pessoas com deficiência assessorando e patrocinando viagens a Brasília de alguns líderes para negociações com parlamentares constituintes.

Uma das principais reivindicações das pessoas com deficiência discutida nos encontros era que o texto constitucional não consolidasse a tutela, e, sim, a autonomia. Nesse sentido, os argumentos do movimento não eram consentâneos ao anteprojeto de Constituição, elaborado pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, que tinha um capítulo intitulado "Tutelas Especiais", específico para as pessoas com deficiência e com necessidades de tutelas especiais. O movimento não queria as tutelas especiais, mas, sim, direitos iguais garantidos juntamente com os de todas as pessoas. A separação, na visão do movimento, era discriminatória. Desde o início da década de 1980, a principal demanda do movimento era a igualdade de direitos, e, nesse sentido, reivindicavam que os dispositivos constitucionais voltados para as pessoas com deficiência deveriam integrar os capítulos dirigidos a todos os cidadãos. O movimento vislumbrava, portanto, que o tema deficiência fosse transversal no texto constitucional.

A segunda etapa de discussões do movimento ocorreu entre o final de 1986 e 1987, nos encontros de conselhos, assessorias e coordenadorias de pessoas com deficiência de todo o Brasil. Durante a 3° Reunião de Conselhos e Coordenadorias Estaduais e Municipais de Apoio à Pessoa Deficiente – realizada em Belo Horizonte, de 5 a 7 de dezembro de 1986 e que contou com representantes de coordenadorias e conselhos de todo o Brasil, além de entidades de e para pessoas com deficiência –, o movimento aprovou uma proposta a ser levada à Assembleia Nacional Constituinte. No documento que sintetizava as propostas (QUADRO 4) para a Constituição, a preocupação em não se criar um capítulo específico para as pessoas com deficiência ganhou destaque, conforme relatado em um jornal do movimento:

A alternativa de incluir na Constituição um texto, à parte, abordando, simultaneamente, os direitos fundamentais das pessoas portadoras de deficiência, é admissível, mas, com muita probabilidade, reforçadora da segregação e do estigma. A distribuição da matéria pelos temas básicos da Carta Magna contribui para o reconhecimento de que as pessoas portadoras de deficiência mereçam ter seus direitos assegurados nos lugares próprios, onde são disciplinados os direitos de todos os cidadãos.

Era, portanto, consenso no movimento a contrariedade em relação à adoção de um capítulo específico para tratar das pessoas com deficiência na Constituição. O documento que consolidou as discussões organizadas pelo Ministério da Cultura e dos encontros de conselhos, assessorias e coordenadorias resultou nas propostas aprovadas na 3° Reunião de Conselhos e Coordenadorias. Esse documento foi a base do texto entregue ao presidente da subcomissão das minorias, deputado Ivo Lech.

Após a fase de sistematização do texto da Constituição a ser votado em plenário, as propostas do movimento das pessoas com deficiência não foram incorporadas da forma esperada. Em decorrência disso, o movimento preparou um projeto de Emenda Popular e iniciou campanhas em todo o Brasil para recolher as 30 mil assinaturas necessárias para submetê-lo à ANC.

A Emenda Popular n° PE00086-5 foi submetida à ANC sob a responsabilidade de três organizações do movimento das pessoas com deficiência, a Onedef, o Movimento de Defesa das Pessoas Portadoras de Deficiência (MDPD) e a Associação Nacional dos Ostomizados, e contou com 32.899 assinaturas. A proposta continha 14 artigos sugerindo alterações no projeto da Constituição, onde coubessem temas como igualdade de direitos, discriminação, acessibilidade, trabalho, prevenção de deficiências, habilitação e reabilitação, direito à informação, educação básica e profissionalizante.

Messias Tavares de Souza, à época coordenador da Onedef, foi o escolhido pelo movimento para defender a Emenda Popular na Assembleia Nacional Constituinte. Em discurso pronunciado no plenário, afirmou que várias das propostas das pessoas com deficiência não estavam sendo contempladas no texto constitucional. Messias Tavares expôs um histórico das lutas das pessoas com deficiência por autonomia, destacou as diferenças entre as organizações de e para pessoas com deficiência e criticou o relatório da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, no qual as propostas do movimento das pessoas com deficiência perdiam espaço para as das entidades assistencialistas:

A organização de entidade de cunho assistencial e paternalista, no Brasil, começou há mais de trinta anos. Cabe a ela, historicamente e ainda hoje, desafogar a consciência pesada, coletiva, do sistema ‘feudal’ e capitalista emergente, provocada pela miséria progressiva e a crescente perda do valor do ser humano, em prol do culto à máquina, ao capital.

No decorrer dos anos 50 e 60, a miséria causada pela pobreza e deficiências, se organiza nos grandes centros. A esmola disfarçada ou o subemprego, como a venda organizada de balas, vêm criar as pequenas iniciativas de organização, sem liberdade ou usando a exploração, o que perdura até hoje.

Na década de 70, os portadores de deficiência, bem como os negros, as mulheres e outros grupos da sociedade civil, resolvem se organizar, por uma questão de sobrevivência. O abandono e a atomização, pelas quais passam as minorias, chegam a um grau insuportável. Surgem, então, pelos recantos mais politizados do País, associações que, ainda usando o lazer como pretexto, promove a conscientização, comandadas por líderes eventuais e raros. Implantam-se então as discussões regionais, sem que cada uma saiba da existência das outras.

De 1979 até nossos dias, formam-se as organizações nacionais de cegos, hansenianos, portadores de deficiências físicas, surdos, ostomizados, talassêmicos, diabéticos, renais crônicos, paralisados cerebrais, entre outros, sem que haja uma representação geral destes segmentos, como resposta a uma necessidade, que já se faz sentir.

[…].

O relatório inicial da Subcomissão tinha o tom do relatório da Federação Nacional das APAEs. Estava em jogo a vitória do passado assistencialista e paternalista e o presente de luta por direitos burgueses, mínimos e necessários à cidadania, à possibilidade de sermos sujeitos além de objetos das políticas da sociedade e do governo.

O que Messias Tavares defendia, na ocasião do discurso, era que o texto constitucional garantisse às pessoas com deficiência a possibilidade de uma vida autônoma e de exercício pleno da cidadania. Voltava-se, dessa forma, às principais bandeiras de luta do movimento desde o início de sua organização: a autonomia e o protagonismo.

Na emenda popular sugeriu-se, por exemplo, para o capítulo "Dos Direitos Individuais", a seguinte redação: "Art. [...] Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas ou por ser portador de deficiência de qualquer ordem." A intenção era inserir a explícita igualdade de direitos para as pessoas com deficiência. Na redação final da Constituição determinou-se: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", sem especificá-las.

Na emenda popular também se propunha transformar a "aposentadoria por invalidez" em "seguro-reabilitação". O objetivo era permitir que a pessoa com deficiência trabalhasse em uma função diferente após a reabilitação, mas, quando em situação de desemprego, contaria com o seguro, que subsidiaria o período de recolocação profissional. Essa foi uma das propostas que não foi incorporada à Constituição promulgada em 1988. Proposta diferenciada substituiu esse artigo e foi encaminhada por outra Emenda Popular, n° PE00077-6, de autoria da Associação Canoense de Deficientes Físicos, da Escola Especial de Canoas e da Liga Feminina de Combate ao Câncer, e que previa o pagamento de um salário mínimo mensal às pessoas com deficiência que não tivessem meios de se manter. Essa proposta gerou o Benefício da Prestação Continuada (BPC).

Para parte do movimento das pessoas com deficiência, a proposta do BPC representa uma tutela que afronta os paradigmas que estimularam o surgimento de organizações de pessoas com deficiência, ocorrido desde o final da década de 1970. O principal argumento dos que são contrários ao BPC é que ele estimula a tutela ao invés de proporcionar às pessoas com deficiência mecanismos de conquista da autonomia. Teresa Costa d’Amaral, à época coordenadora da Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), explica que a proposição do BPC partiu de uma iniciativa individual:

Por exemplo, tem um fato interessante da Constituinte: há um artigo que cria o Benefício da Prestação Continuada. E, em relação à criação desse benefício, o movimento era contra, eu fui contra. Mas uma senhora, mãe de um deficiente do Rio Grande do Sul, resolveu que ela ia fazer passar um benefício para o filho dela que era deficiente intelectual e para os outros deficientes. Conseguiu o número de assinaturas que eram necessárias para uma Emenda Popular e conseguiu incluir sua proposta. (Teresa Costa d’Amaral. Depoimento oral, 28 de abril de 2009)

O movimento das pessoas com deficiência articulou-se de forma efetiva em torno do objetivo de incorporar suas demandas no texto constitucional. Mesmo quando, ainda durante a fase de sistematização, tais demandas não foram incorporadas ao projeto do texto constitucional, o movimento mostrou força e se rearticulou rapidamente na elaboração da emenda popular. O principal êxito dessa luta foi o fato de o movimento ter conseguido superar a lógica da segregação presente na proposta do capítulo "Tutelas Especiais" e incorporar, mais do que direitos ao longo de todo o texto constitucional, ao menos pelo viés legal, o princípio da inclusão das pessoas com deficiência na sociedade.

As impressões do movimento sobre as conquistas na Constituição de 1988 podem ser percebidas nos depoimentos de Rosângela Berman Bieler e Romeu Kazumi Sassaki:

"A gente conseguiu, na reforma constitucional, distribuir o tema da deficiência em todos os artigos constitucionais, o que já é vanguarda. [...] Quando você pega um texto constitucional, há duas opções estratégicas: ou se cria um bloco inteiro sobre deficiência [...], pega tudo e joga ali naquela caixinha, que não só é mais fácil de botar como é fácil de tirar; ou se integra o tema em todo o corpo constitucional, nos tópicos do direito do cidadão, do direito à saúde, do direito à educação." (Rosângela Berman Bieler. Depoimento oral, 2 de fevereiro de 2009)

"Em 1986, já estava pronto o anteprojeto da Constituição. Se você comparar o anteprojeto com a Constituição de 1988, vai ver a grande diferença, o quanto nós conseguimos interferir. O anteprojeto era muito fraco, com aquela visão antiga, paternalista, sobre pessoas com deficiência. Ali realmente nós crescemos." (Romeu Kazumi Sassaki. Depoimento oral, 5 de fevereiro de 2009)

O esforço de unificação nacional das pessoas com deficiência, durante a década de 1980, passou por rearranjos políticos importantes que resultaram na organização do movimento por grupos com a mesma manifestação da deficiência. Esse rearranjo foi visto por muitos militantes da época como insucesso na tentativa de criar uma grande organização nacional, unificada em torno da Coalizão. No entanto, a experiência de articulação do movimento adquirida no início da década de 1980 foi bastante profícua para que, independentemente do tipo de deficiência, se conseguisse incorporar os princípios de igualdade na Constituição de 1988.

Tabela 1.4 - Propostas aprovadas na 3ª Reunião de Conselhos e Coordenadorias Estaduais e Municipais de Apoio à Pessoa com deficiência

1. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas ou por ser pessoa com deficiência de qualquer ordem. Será punida pela lei toda discriminação atentatória aos direitos humanos.

2. Garantir e proporcionar a prevenção de doenças ou condições que levem à deficiência.

3. Assegurar às pessoas com deficiência o direito à habilitação e reabilitação com todos os equipamentos necessários.

4. Assegurar às pessoas com deficiência o direito à educação básica e profissionalizante obrigatória e gratuita, sem limite de idade, desde o nascimento.

5. A União, os Estados e os Municípios devem garantir para a educação das pessoas com deficiência, em seus respectivos orçamentos, o mínimo de 10% do valor que constitucionalmente for destinado à educação.

6. Proibir a diferença de salário e de critério de admissão, promoção e dispensa, por motivo discriminatório, relativos a pessoa com deficiência, raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade, idade, estado civil, origem e a condição social.

7. Conceder a dedução no Imposto de Renda, de pessoas físicas e jurídicas, dos gastos com adaptação e aquisição de equipamentos necessários ao exercício profissional de pessoas com deficiência. Regulamentar e organizar o trabalho das oficinas abrigadas para pessoas portadoras de deficiência, enquanto não possam integrar-se no mercado de trabalho competitivo.

8. Transformar a "aposentadoria por invalidez" em "seguro-reabilitação" e permitir à pessoa com deficiência trabalhar em outra função diferente da anterior, ficando garantido este seguro sempre que houver situação de desemprego.

9. Garantir a aposentadoria por tempo de serviço aos 20 (vinte) anos de trabalho, para as pessoas com deficiência que tenham uma expectativa de vida reduzida.

10. Garantir o livre acesso a edifícios públicos e particulares de frequência aberta ao público, a logradouros públicos e ao transporte coletivo, mediante a eliminação de barreiras arquitetônicas, ambientais e a adaptação dos meios de transporte.

11. Garantir ações de esclarecimento junto às instituições de ensino, às empresas e às comunidades, quanto à importância de prevenção de doenças ou condições que levam à deficiência.

12. Garantir o direito à informação e à comunicação, considerando-se as adaptações necessárias para as pessoas com deficiência.

13. Isentar os impostos às atividades relacionadas ao desenvolvimento de pesquisa, produção, importação e comercialização de material ou equipamento especializado para pessoas com deficiência.

sábado, 28 de janeiro de 2012

História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil 5/5



O movimento político das Pessoas com Deficiência.

Mário Cléber Martins Lanna Júnior.

O associativismo mencionado no capítulo anterior foi uma etapa no caminho de organização das pessoas com deficiência, antes restritas à caridade e a políticas de assistência, em direção às conquistas no universo da política e da luta por seus direitos. Esse processo de associações criou o ambiente para a formalização da consciência que resultaria no ‘movimento político das pessoas com deficiência’ na década de 1970. Nessa época, surgiram as primeiras organizações compostas e dirigidas por pessoas com deficiência contrapondo-se às associações que prestavam serviços a este público. Esta dicotomia, que mais adiante será abordada neste capítulo, permanece como modelo até os dias atuais.

As primeiras organizações associativistas de pessoas com deficiência não tinham sede própria, estatuto ou qualquer outro elemento formal. Eram iniciativas que visavam o auxílio mútuo e não possuíam objetivo político definido, mas criaram espaços de convivência entre os pares, onde as dificuldades comuns poderiam ser reconhecidas e debatidas. Essa aproximação desencadeou um processo da ação política em prol de seus direitos humanos. No final dos anos 1970, o movimento ganhou visibilidade, e, a partir daí, as pessoas com deficiência tornaram-se ativos agentes políticos na busca por transformação da sociedade. O desejo de serem protagonistas políticos motivou uma mobilização nacional. Essa história alimentou-se da conjuntura da época: o regime militar, o processo de redemocratização brasileira e a promulgação, pela ONU, em 1981, do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD).

A ditadura militar no Brasil teve início em 1964 e terminou em 1985, com a eleição, ainda que indireta, de Tancredo Neves, o 1º presidente civil após 21 anos de autoritarismo. Durante os chamados "anos de chumbo", o exercício da cidadania foi limitada em todas as suas dimensões: direitos civis e políticos eram cerceados e os direitos sociais, embora existissem legalmente, não eram desfrutados. Prevalecia a censura e a falta de liberdade.

Com o processo de enfraquecimento e declínio do regime militar, a partir de meados da década de 1970, iniciou-se um processo de abertura política "lenta, gradual e segura". A redemocratização desenrolou-se em contexto especialmente fértil, em termos de demandas sociais, com uma participação política ampla. Esse período foi marcado pela ativa participação da sociedade civil, que resultou no fortalecimento dos sindicatos, na reorganização de movimentos sociais e na emergência das demandas populares em geral. Era o Brasil, novamente, rumo à democracia.

Os movimentos sociais, antes silenciados pelo autoritarismo, ressurgiram como forças políticas. Vários setores da sociedade gritaram com sede e com fome de participação: negros, mulheres, índios, trabalhadores, sem-teto, sem-terra e, também, as pessoas com deficiência.

Esse processo se reflete na Constituição Federal promulgada em 1988. A Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), envolvida no espírito dos novos movimentos sociais, foi a mais democrática da história do Brasil, com canais abertos e legítimos de participação popular.

Os novos movimentos sociais, dentre os quais o movimento político das pessoas com deficiência, saíram do anonimato e, na esteira da abertura política, uniram esforços, formaram novas organizações, articularam-se nacionalmente, criaram estratégias de luta para reivindicar igualdade de oportunidades e garantias de direitos.

Outro fator relevante foi a decisão da ONU de proclamar 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD), sob o tema "Participação Plena e Igualdade". O advento do AIPD colocou as pessoas com deficiência no centro das discussões, no mundo e também no Brasil.

Tanto o AIPD quanto o processo de redemocratização atuaram como catalisadores do movimento que, no primeiro momento, procurou construir e consolidar sua unidade. A criação da Coalizão Pró-Federação Nacional foi a materialização do esforço unificador, consubstanciado por três encontros nacionais, realizados entre 1980 e 1983, buscando elaborar uma agenda única de reivindicações e estratégias de luta, bem como fundar a Federação Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes. O amadurecimento das discussões resultou em um rearranjo político no qual a federação única foi substituída por federações nacionais por tipo de deficiência.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil 4/5



O Associativismo das Pessoas com Deficiência

Mário Cléber Martins Lanna Júnior.

Capítulo 2.

A partir de meados do século XX, é possível observar o surgimento de organizações criadas e geridas pelas próprias pessoas com deficiência. A motivação inicial é a solidariedade entre pares nos seguintes grupos de deficiência: cegos, surdos e deficientes físicos que, mesmo antes da década de 1970, já estavam reunidos em organizações locais - com abrangência que raramente ultrapassava o bairro ou o município–, em geral, sem sede própria, estatuto ou qualquer outro elemento formal. Eram iniciativas que visavam ao auxílio mútuo e à sobrevivência, sem objetivo político prioritariamente definido. Essas organizações, no entanto, constituíram o embrião das iniciativas de cunho político que surgiriam no Brasil, sobretudo durante a década de 1970.

O movimento associativista dos cegos.

A criação do sistema Braille, em 1829, inaugurou “a era moderna” da história das pessoas cegas, promovendo uma verdadeira revolução no processo de ensino e aprendizagem dos cegos. A partir de então, a institucionalização da educação e da profissionalização dos cegos ganhou impulso, e o Braille se configurou como a forma mais efetiva de escrita e leitura para pessoas cegas. No entanto, a progressiva proliferação das instituições especializadas em educação de cegos em todo o mundo, por si só, não lhes garantiu integração na sociedade, acesso a direitos, nem fim do preconceito e do estigma associado à cegueira.

A partir da década de 1950, no Brasil, observa-se um novo modelo de organização das pessoas com deficiência visual – o modelo associativista. As primeiras associações de cegos surgiram no Rio de Janeiro, resultado de interesses eminentemente econômicos. Os associados eram, em geral, vendedores ambulantes, artesãos especializados no fabrico de vassouras, empalhamento de cadeiras, recondicionamento de escovões de enceradeiras e correlatos. Ao contrário dos asilos, hospitais e mesmo das escolas especializadas, fruto da caridade e da filantropia ou de iniciativas governamentais, as novas associações nasciam da vontade e da ação dos indivíduos cegos que buscavam, no associativismo, mecanismos para a organização de suas lutas e melhoria de sua posição no espaço social.

Evidências do associativismo dos cegos podem ser encontradas em tempos remotos, mais precisamente no século XIX, em 1893, quando um grupo formado por ex-alunos e professores do Instituto Benjamin Constant (IBC) criou o Grêmio Comemorativo Beneficente Dezessete de Setembro. Inspirado em associações similares encontradas na Europa, o Grêmio visava comemorar a data de fundação do Instituto, promover a educação do cego, apoiar ex-alunos em questões de empregabilidade e sensibilizar a sociedade em relação ao preconceito.

Essas novas associações são marcadas pela “ambiguidade original” porque estão situadas em uma cultura que legou aos cegos soluções que apontavam ora para a exclusão, ora para práticas de caridade e filantropia. Por conseguinte, as associações reproduzem, em suas práticas e ações, um modo de agir que, ao mesmo tempo em que reforça o estigma e a discriminação, combate frontalmente esses códigos culturais.

O modelo associativista dos cegos nasceu em um momento de transição de duas visões de mundo: do modelo médico ao modelo social com base nos Direitos Humanos. Nessa época de transição, houve aumento na impressão de livros em Braille, com a instalação da imprensa Braille na Fundação para o Livro do Cego no Brasil, criada em 1946 – atualmente denominada Fundação Dorina Nowill para Cegos –, para possibilitar a educação dos cegos e ampliar o acesso à leitura. A Fundação foi criada por iniciativa de algumas normalistas do colégio Caetano de Campos, em São Paulo. Entre as normalistas estavam Neith Moura e Dorina Nowill que, durante o curso normal, criaram um grupo experimental de educação de cegos que desenvolvia metodologias de ensino e transcrevia manualmente livros para o Braille. O trabalho de transcrição para o Braille transformou-se, após algum tempo, na Fundação para o Livro do Cego no Brasil.

Na década de 1950, fato marcante foi o Conselho Nacional de Educação autorizar que estudantes cegos ingressassem nas faculdades de Filosofia.

Novas organizações associativistas surgiram no início da década de 1960, quando as pessoas com deficiência visual fomentaram o debate contra a Campanha Nacional de Educação dos Cegos, e sobre o internamento de cegos em instituições. Essa prática era questionada, considerada fator de exclusão e de reforço à discriminação. O debate contribuiu para o crescimento do número de associações criadas por pessoas com deficiência visual. Essas novas associações se diferenciavam de suas precedentes, surgidas na década de 1950, pois defendiam interesses amplos da pessoa com deficiência muito além da questão econômica: lutavam por educação, profissionalização, cultura e lazer.

Ao lado do associativismo local, desenvolvia-se e consolidava-se o estatuto da “representação nacional” com o objetivo de organizar o movimento em todo o País, estabelecer uma ponte de diálogo entre as entidades locais, o governo e as instituições da sociedade civil, representar a coletividade cega brasileira e lutar em defesa de suas necessidades fundamentais.

A primeira entidade nacional foi o Conselho Brasileiro para o Bem-Estar dos Cegos (CBEC), fundado no Rio de Janeiro, em 1954. O Conselho foi criado por iniciativa de Dorina Nowill e do diretor do IBC, Dr. Rogério Vieira, que, após se reunirem com representantes de outras organizações, decidiram criar a entidade, que teve Dorina Nowill como primeira presidente. O Conselho era filiado ao Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos.

O Conselho Mundial para o Bem-estar dos Cegos transformou-se na União Mundial dos Cegos (World Blind Union), que é atualmente a principal organização de cegos no mundo. A União Mundial dos Cegos foi criada em 1984, quando o Conselho Mundial e a Federação Internacional dos Cegos se fundiram no novo órgão.

O movimento dos surdos: Língua Brasileira de Sinais, cultura e identidade surda.

Com a instalação das escolas para surdos, surgiu também a disputa sobre o melhor método de educação de surdos: a Língua Brasileira de Sinais, o oralismo ou a mista. No final do século XIX, a Língua de Sinais sofreu grande revés. Em 1880, no Congresso Internacional de Professores de Surdos, em Milão, Itália, o método oral foi escolhido como o melhor para a educação dos surdos. A Língua de Sinais foi proibida oficialmente em diversos países, sob a alegação de que destruía a habilidade de oralização dos surdos. Tal proibição despertou o que alguns autores chamam de “isolamento cultural do povo surdo”, já que a proibição dessa língua tem por consequência a negação da cultura e da identidade surdas. Seguindo a orientação do Congresso de Milão, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos também proibiu a Língua de Sinais. Como consequência dessa proibição, observou-se o declínio do número de professores surdos nas escolas para surdos e o aumento dos professores ouvintes.

Essa proibição criou o que alguns estudiosos contemporâneos chamam de “ouvintismo”, que seria o conjunto de representações dos ouvintes a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte.

O termo é uma analogia a colonialismo e colonialista. As práticas ouvintistas são um conjunto de estratégias e ações que podem ser tanto físicas, visíveis ao corpo do surdo – como as próteses auditivas –, quanto subjetivas, como as formas de disciplinar o surdo; as normas, os costumes, jeitos e trejeitos ouvintes que impõem esses sujeitos ao ouvintismo, às práticas de normalização que imprimem uma forma de ‘ser surdo ouvintizado.

Os alunos surdos eram proibidos de usar a Língua de Sinais; assim, para impedir-lhes o uso, foram adotadas medidas extremas tais como: forçar os alunos a manter os braços cruzados, amarrar as mãos, comparar quem usava a língua de sinais com macacos. Os códigos não foram eliminados, mas conduzidos ao mundo marginal.

Os movimentos dos surdos passaram, então, a constituir-se como uma resistência às práticas “ouvintistas”. Esses movimentos se dão em espaços como as associações, as cooperativas e os clubes – territórios livres do controle ouvinte –, onde os surdos estabeleciam intercâmbio cultural e linguístico e faziam uso da Língua de Sinais. Grande parte das associações de surdos surgiu exatamente nos períodos de maior ênfase à oralidade e à negação da diferença, envolvendo o final do século XIX até aproximadamente as décadas de 1960 e 1970. Ou seja, um dos principais fatores de reunião das pessoas surdas era, e ainda é, o uso e a defesa da Língua de Sinais.

No Brasil, há registros de que, no final da década de 1930, um grupo de surdos ex-estudantes do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) fundou a Associação Brasileira de Surdos-Mudos no Rio de Janeiro. Uma segunda associação foi fundada em maio de 1953 com a ajuda de uma professora de surdos, Ivete Vasconcelos. Além disso, os ex-estudantes do INES voltavam para suas cidades de origem e criavam associações de surdos, tais como a Associação de Surdos-Mudos de São Paulo, fundada em março de 1954, e a Associação de Surdos de Belo Horizonte, em 1956.

A origem da organização dos surdos brasileiros também tem fortes ligações com o esporte, daí ter sido fundada, em 1959, a Federação Desportiva de Surdos do Rio de Janeiro, com o nome de Federação Carioca de Surdos-Mudos.

A Federação Carioca de Surdos-Mudos era liderada por Sentil Delatorre e reconhecida pelo Conselho Nacional de Desportos e pela Confederação Brasileira de Futebol. Posteriormente, filiou-se ao Comitê Internacional de Esportes dos Surdos. Com o crescimento da prática desportiva de surdos, Sentil Delatorre tomou a iniciativa de convocar uma assembleia geral que, em novembro de 1984, no auditório do INES criou a Confederação Brasileira de Desporto para Surdos.

O movimento internacional de surdos se articulou sob coordenação da Federação Mundial de Surdos (Word Federation of the Deaf – WFD), criada em 1951 e com sede na Finlândia. Articulando-se com os organismos ligados às Nações Unidas, os líderes surdos procuraram, a partir daí, interferir nas políticas e nas recomendações apresentadas aos governos dos seus países. A WFD teve influência decisiva nas recomendações da UNESCO, em 1984, no reconhecimento formal da Língua de Sinais como língua natural das pessoas surdas, garantindo que crianças surdas tivessem acesso a ela o mais precocemente possível.

A cultura surda e a Língua de Sinais ganharam importantes argumentos em sua defesa quando, em meados de 1960, o linguista Willian Stokoe publicou o livro Language Structure: an outline of the visual communication system of the american deaf (Estrutura de Linguagem: uma abordagem do sistema de comunicação visual do surdo americano), no qual afirma que a língua de sinais americana tinha todas as características da língua oral. Ao se conferir status de “língua” à Língua de Sinais, os surdos puderam reafirmar com mais força e argumentação o seu pertencimento a uma comunidade linguística que lhes provê uma cultura e uma identidade próprias.

Não há como negar a complexidade que existe nas relações entre cultura, linguagem e identidade; mas também não se pode negar que o fato de pertencer a um mundo de experiência visual e não auditiva traz uma marca identitária significativa para essa parcela da população, que reafirma sua diferença perante o mundo ouvinte e, assim, legitima sua luta por direitos e pela sua existência como cidadãos.

Organização das pessoas com deficiência física

Os deficientes físicos também se associaram em entidades voltadas para a sobrevivência e a prática do esporte adaptado. Essas organizações, que não tinham objetivos políticos definidos, foram os primeiros espaços em que as pessoas com deficiência física começaram a discutir os problemas comuns. São exemplos dessas organizações: a Associação Brasileira de Deficientes Físicos (Abradef) e o Clube do Otimismo, ambos do Rio de Janeiro; o Clube dos Paraplégicos de São Paulo; e a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCDD), atualmente Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência do Brasil (FCD-BR), presente em várias cidades do Brasil. Muitas dessas associações foram criadas com o intuito de viabilizar formas de obter recursos financeiros para a sobrevivência de seus filiados.

Nesse sentido, organizavam, por exemplo, translado para que os grupos de deficientes físicos fossem até locais de grande circulação de pessoas vender balas, quitandas ou outras mercadorias de pequeno valor. É possível perceber um apelo à caridade para que os consumidores comprassem as mercadorias.

As associações esportivas.

Outras formas de associação de deficientes físicos comuns nesse período foram as organizações voltadas para a prática de esporte. O desenvolvimento do esporte adaptado no mundo ocorreu, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial. A partir de 1946, começaram a surgir, nos Estados Unidos e na Inglaterra, os primeiros movimentos organizados de esporte para pessoas com deficiência. Na década de 1950, o esporte adaptado se popularizou em todo o mundo.

No Brasil, os primeiros clubes foram fundados em 1958: Clube dos Paraplégicos de São Paulo e Clube do Otimismo do Rio de Janeiro. Ambos os clubes foram fundados por atletas que ficaram com lesão medular em certo momento da vida e que tiveram a oportunidade de se tratar nos Estados Unidos, onde conheceram o esporte adaptado. Em São Paulo, o fundador foi Sérgio Del Grande e, no Rio de Janeiro, Robson Sampaio. Essas iniciativas tiveram como efeito secundário o início da percepção, pelas pessoas com deficiência, da necessidade de discutirem sua inserção política na sociedade. As próprias dificuldades enfrentadas tanto para a prática do esporte quanto no trabalho precário, como a venda de mercadorias de pequeno valor estimularam o início de reivindicações, sobretudo no que se refere à mobilidade. Com o passar do tempo, assumiram cunho cada vez mais político.

Isso ensejou, no final da década de 1970, no contexto da redemocratização do Brasil, o surgimento de organizações de pessoas com deficiência, com caráter claramente definido e com o objetivo de conquistar espaço na sociedade, direitos e autonomia para conduzirem a própria vida.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil 3/5



As Primeiras Ações e Organizações Voltadas para as Pessoas com Deficiência.

Mário Cléber Martins Lanna Júnior.

Capítulo 1.

Durante o período colonial, usavam-se práticas isoladas de exclusão - apesar de o Brasil não possuir grandes instituições de internação para pessoas com deficiência. As pessoas com deficiência eram confinadas pela família e, em caso de desordem pública, recolhidas às Santas Casas ou às prisões. As pessoas com hanseníase eram isoladas em espaços de reclusão, como o Hospital dos Lázaros, fundado em 1741. A pessoa atingida por hanseníase era denominada “leprosa”, “insuportável” ou “morfética”. A doença provocava horror pela aparência física do doente não tratado – eles possuíam lesões ulcerantes na pele e deformidades nas extremidades do corpo –, que era lançado no isolamento dos leprosários e na exclusão do convívio social. A chegada da Corte portuguesa ao Brasil e o início do período Imperial mudaram essa realidade.

No século XIX tiveram início as primeiras ações para atender as pessoas com deficiência, quando o País dava seus primeiros passos após a independência, forjava sua condição de Nação e esboçava as linhas de sua identidade cultural. O contexto do Império (1822-1889), marcado pela sociedade aristocrática, elitista, rural, escravocrata e com limitada participação política, era pouco propício à assimilação das diferenças, principalmente as das pessoas com deficiência. O Decreto n° 82, de 18 de julho de 1841, determinou a fundação do primeiro hospital “destinado privativamente para o tratamento de alienados”, o Hospício Dom Pedro II, vinculado á Santa Casa de Misericórdia, instalado no Rio de janeiro. O estabelecimento começou a funcionar efetivamente em 9 de dezembro de 1852.

Em 1854, foi fundado o Imperial Instituto dos Meninos Cegos e, em 1856, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos*. 1 Durante o século XIX, apenas os cegos e os surdos eram contemplados com ações para a educação. É importante destacar que a oferta de atendimento concentrava- se na capital do Império.

1 Não se usa mais o vocábulo “mudo” como complemento da identificação de surdos, já que, na maioria absoluta das vezes, o fato de não falar está relacionado ao não conhecimento dos sons e à consequente impossibilidade de repeti-los, e não a uma doença que impeça a fala.

Com o advento da República, o Hospício Dom Pedro II foi desanexado da Santa Casa de Misericórdia e passou a ser chamado de Hospício Nacional de Alienados. Somente em 1904, foi instalado o primeiro espaço destinado apenas a crianças com deficiência – o Pavilhão-Escola Bourneville.

Na primeira metade do século XX, o Estado não promoveu novas ações para as pessoas com deficiência e apenas expandiu, de forma modesta e lenta, os institutos de cegos e surdos para outras cidades. As poucas iniciativas, além de não terem a necessária distribuição espacial pelo território nacional e atenderem uma minoria, restringiam-se apenas aos cegos e surdos. Diante desse déficit de ações concretas do Estado, a sociedade civil criou organizações voltadas para a assistência nas áreas de educação e saúde, como as Sociedades Pestalozzi (1932) e as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) (1954). Ainda na década de 50, o surto de poliomielite levou à criação dos centros de reabilitação física.

Os institutos no Império.

As questões relativas às pessoas cegas e surdas surgiram no cenário político do Império em 1835, durante o Período Regencial, quando o conselheiro Cornélio Ferreira França, deputado da Assembleia Geral Legislativa, propôs que cada província tivesse um professor de primeiras letras para surdos e cegos. Todavia, a recém-formada Nação Brasileira, independente de Portugal há apenas 13 anos, enfrentava um momento político conturbado e a proposta do conselheiro França sequer foi discutida na Câmara dos Deputados. O tema só foi retomado na década de 1850.

O Estado brasileiro foi pioneiro na América Latina no atendimento às pessoas com deficiência, ao criar, em 1854, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (atual Instituto Benjamin Constant - IBC), e, em 1856, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos (hoje Instituto Nacional de Educação de Surdos - INES). Essas instituições, que funcionavam como internatos, inspiravam-se nos preceitos do ideário iluminista e tinham como objetivo central inserir seus alunos na sociedade brasileira, ao fornecer-lhes o ensino das letras, das ciências, da religião e de alguns ofícios manuais.

Apesar do pioneirismo, ambos os institutos ofertaram um número restrito de vagas durante todo o Período Imperial. O conceito dessas instituições se baseou na experiência europeia, mas diferentemente de seus pares estrangeiros, normalmente considerados entidades de caridade ou assistência, tanto o Imperial Instituto dos Meninos Cegos quanto o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos encontravam-se, na estrutura administrativa do Império, alocados na área de instrução pública. Eram, portanto, classificados como instituições de ensino. A cegueira e a surdez foram, no Brasil do século XIX, as únicas deficiências reconhecidas pelo Estado como passíveis de uma abordagem que visava superar as dificuldades que ambas as deficiências traziam, sobretudo na educação e no trabalho.

O Imperial Instituto dos Meninos Cegos.

O Imperial Instituto dos Meninos Cegos foi criado pelo Imperador D. Pedro II, em 1854, para instruir as crianças cegas do Império. A instituição foi instalada no Rio de Janeiro e tinha como modelo o Instituto de Meninos Cegos de Paris, cujos métodos de ensino eram considerados os mais avançados de seu tempo. Foi o discurso eloqüente do jovem cego e ex-aluno do Instituto de Paris José Álvares de Azevedo que convenceu o imperador a instituí-lo, durante uma audiência intermediada pelo médico da corte, ao Dr. José Francisco Xavier Siga e pelo Barão do Rio Bonito, o então presidente da Província do Rio de Janeiro.

Em seu primeiro ano de funcionamento, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos atendeu alunos de apenas duas províncias – Rio de Janeiro e Ceará. Até o fim do regime monárquico, recebeu meninos e meninas de várias outras províncias, tais como Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. O ingresso dos alunos estava condicionado à autorização do ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império.

O Imperial Instituto dos Surdos-Mudos.

O Imperial Instituto dos Surdos-Mudos foi criado em 1856, por iniciativa particular do francês E. Huet, professor surdo e ex-diretor do Instituto de Surdos-Mudos de Bourges. A criação do Instituto e suas primeiras atividades foram financiadas por donativos até 1857, quando a lei orçamentária destinou-lhe recursos públicos e o transformou em instituição particular subvencionada (Lei n° 939, de 26 de setembro de 1857), posteriormente assumida pelo Estado. Huet dirigiu a instituição por aproximadamente cinco anos e, depois de sua retirada, em 1861, o Instituto entrou em processo de desvirtuamento de seus objetivos.

O Instituto atendeu apenas três pessoas surdas em 1856. Com o tempo, esse atendimento se expandiu. A princípio, eram alunos provenientes do Rio de Janeiro, sobretudo da capital do Império, onde o Instituto estava instalado; posteriormente, vieram alunos de outras províncias: Alagoas, Bahia, Ceará, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, São Paulo, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco e Santa Catarina.

A crise na instituição foi exposta em 1868, quando o chefe da Seção da Secretaria de Estado, Tobias Rabello Leite, realizou inspeção nas atividades e condições do Instituto. Em seu relatório, apontou que o desvio seus propósitos originais, transformando-se em um verdadeiro asilo de surdos. Tobias Leite tornou-se diretor da Instituição até 1896 e deu-lhe o impulso definitivo como referência na educação de surdos no Brasil.

O currículo consistia no ensino elementar incorporado de algumas matérias do secundário. O ensino profissionalizante focava-se em técnicas agrícolas, já que a maioria dos alunos era proveniente de famílias pobres do meio rurual. Em meados da década de 1870, foram instaladas oficinas profissionalizantes de encadernação e sapataria.

A República e as primeiras iniciativas da sociedade civil.

Com a proclamação da República, em 1889, os institutos tiveram a denominação alterada. Imediatamente após a queda do regime monárquico, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos recebeu o nome de Instituto dos Meninos Cegos, alterado, em 1890, para Instituto Nacional dos Cegos e, em 1891, para Instituto Benjamin Constant (IBC), homenagem ao seu diretor mais ilustre. Pelo mesmo motivo, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos deixou de ostentar a alcunha de instituição imperial, mantendo o nome de Instituto dos Surdos-Mudos, até 1957, quando passou a se chamar Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).

A ação do Estado em relação às pessoas com deficiência mudou muito pouco com o advento da República. Os Institutos permaneceram como tímidas iniciativas – mesmo com o surgimento de congêneres em outras regiões do Brasil –, tanto porque atendiam parcela diminuta da população de pessoas com deficiência em face da demanda nacional, quanto por se destinarem a apenas dois tipos de deficiência: a cegueira e a surdez. Por exemplo, em 1926, foi fundado o Instituto São Rafael, em Belo Horizonte; em 1929, o Instituto de Cegos Padre Chico, em São Paulo; em 1959, o Instituto Londrinense de Educação de Surdos (ILES) em Londrina, todos ainda em funcionamento.

No contexto histórico de industrialização e urbanização brasileiras, processo iniciado na década de 1920 e aprofundado nas décadas de 1940 e 1950, surgiram, por iniciativa da sociedade civil, novas organizações voltadas para as pessoas com deficiência. Essas novas organizações se destinavam a outros tipos de deficiência e com formas de trabalho diferenciadas, por não se restringirem à educação e atuarem também na saúde.

Nesse período, os primeiros centros de reabilitação física surgiram motivados pelo surto de poliomielite. Com relação aos hansenianos, persistiu a prática de isolamento em leprosários, somente interrompida na década de 1980. Com o passar do tempo, os leprosários tornaram-se verdadeiras cidades, praticamente autossuficientes, com prefeitura própria, comércio, escola, igreja, delegacia e cemitério.

As principais iniciativas para atender a deficiência intelectual desse período foram dos movimentos pestalozziano e apaeano. Até a metade do século XIX, a deficiência Intelectual era considerada uma forma de loucura e era tratada em hospícios. Durante a República, iniciaram-se as investigações sobre a etiologia da deficiência intelectual, sendo que os primeiros estudos realizados no Brasil datam do começo do século XX.

A monografia sobre educação e tratamento médico pedagógico dos idiotas, do médico Carlos Eiras de 1900, é o primeiro trabalho científico sobre a deficiência intelectual no Brasil. Após a metade do século XX, dois trabalhos científicos produzidos por psiquiatras tornaram-se referências: a tese Introdução ao estudo da deficiência mental (oligofrenias), de Clóvis de Faria Alvim, publicada em 1958, e o livro Deficiência mental, de Stanislau Krynski, publicado em 1969.

A deficiência intelectual, à época denominada “idiotia”, passou a ser tratada na perspectiva educacional com tratamento diferenciado em relação aos hospícios do século XIX. Ao longo do tempo, a pessoa com deficiência intelectual já foi denominada de oligofrênica, cretina, imbecil, idiota, débil mental, mongolóide, retardada, excepcional e deficiente mental. A expressão “deficiência intelectual” significa que há um déficit no funcionamento do intelecto, mas não da mente. A expressão “deficiência intelectual” foi introduzida oficialmente em 1995, pela ONU, e consagrada, em 2004, no texto da “Declaração de Montreal Sobre Deficiência Intelectual”.

Movimento pestalozziano.

No Brasil, inspirado pelo pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), foi criado, em 1926, o Instituto Pestalozzi de Canoas, no Rio Grande do Sul. A influência do ideário de Pestalozzi, no entanto, ganhou impulso definitivo com Helena Antipoff, educadora e psicóloga russa que, a convite do Governo do Estado de Minas Gerais, veio trabalhar na recém-criada Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte. Sua atuação marcou consideravelmente o campo da assistência, da educação e da institucionalização das pessoas com deficiência intelectual no Brasil. Foi Helena Antipoff quem introduziu o termo “excepcional”, no lugar das expressões “deficiência mental” e “retardo mental”, usadas na época para designar as crianças com deficiência intelectual. Para ela, a origem da deficiência vinculava-se à condição de excepcionalidade socioeconômica ou orgânica.

Helena Antipoff criou, em 1932, a Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte. Em 1945, foi fundada a Sociedade Pestalozzi do Brasil; em 1948, a Sociedade Pestalozzi do Estado do Rio de Janeiro; e, em 1952, a Sociedade Pestalozzi de São Paulo. Até 1970, data da fundação da Federação Nacional das Sociedades Pestalozzi (Fenasp), o movimento pestalozziano contava com oito organizações em todo o País. A criação da federação, também por iniciativa de Helena Antipoff, fomentou o surgimento de várias sociedades Pestalozzi pelo Brasil. Atualmente, são cerca de 150 sociedades Pestalozzi filiadas à Fenasp.

Movimento apaeano.

A primeira Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) foi fundada em 1954, no Rio de Janeiro, por iniciativa da americana Beatrice Bemis, mãe de uma criança com deficiência intelectual. A reunião inaugural do Conselho Deliberativo da APAE do Rio de Janeiro ocorreu em março de 1955, na sede da Sociedade de Pestalozzi do Brasil. Em 1962, havia 16 APAEs no Brasil, 12 das quais se reuniram em São Paulo para a realização do 1° Encontro Nacional de Dirigentes Apaeanos, sob a coordenação do médico psiquiatra Dr. Stanislau Krynski. Participaram dessa reunião as APAEs de Caxias do Sul, Curitiba, Jundiaí, Muriaé, Natal, Porto Alegre, São Leopoldo, São Paulo, Londrina, Rio de Janeiro, Recife e Volta Redonda. Durante a reunião decidiu-se pela criação da Federação Nacional das APAEs (Fenapaes).

A Fenapaes foi oficialmente fundada em 10 de novembro de 1962. Funcionou inicialmente em São Paulo, no consultório do Dr. Stanislau Krynski, até que uma sede própria foi instalada em Brasília. Atualmente, a Fenapaes reúne 23 federações estaduais e mais de duas mil APAEs distribuídas por todo o País. Essas organizações constituem uma rede de atendimento à pessoa com deficiência de expressiva capilaridade na sociedade, que presta serviços de educação, saúde e assistência social. O atendimento é voltado para as pessoas com deficiência intelectual e múltipla.

Os centros de reabilitação.

Em meados da década de 1950, estudantes de medicina e especialistas trouxeram da Europa e dos Estados Unidos os métodos e paradigmas do modelo de reabilitação do pós-guerra, cuja finalidade era proporcionar ao paciente o retorno à vida em sociedade. Os grandes centros de reabilitação europeus e norte-americanos, que recebiam predominantemente vítimas da Segunda Grande Guerra, desenvolveram técnicas e inspiraram o surgimento de organizações similares em todo o mundo. Isso ocorreu mesmo em países como o Brasil, onde a principal causa da deficiência física não era a guerra. Nesse período, surgiram os primeiros centros brasileiros de reabilitação para atenderem as pessoas acometidas pelo grande surto de poliomielite.

A poliomielite foi observada no início do século XX, no Rio de Janeiro (1907-1911) e em São Paulo (1918). Porém, surtos de considerável magnitude ocorreram na década de 1930, em Porto Alegre (1935), Santos (1937), São Paulo e Rio de Janeiro (1939). A partir de 1950, foram descritos surtos em diversas cidades, com destaque para o de 1953, a maior epidemia já registrada no Brasil, que atingiu o coeficiente de 21,5 casos por 100 mil habitantes, no Rio de Janeiro.

Um dos primeiros centros de reabilitação do Brasil foi a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), fundada em 1954. Idealizada pelo arquiteto Fernando Lemos, cujo filho possuía sequelas de poliomielite, a ABBR contou com o apoio financeiro de grandes empresários provenientes dos setores de comunicação, bancário, de aviação, de seguros, dentre outros. Entre esses empresários, estava Percy Charles Murray, vítima de poliomielite e primeiro presidente da associação.

A primeira ação da ABBR foi criar a escola de reabilitação para formar fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, diante da carência desses profissionais no Brasil. Os cursos de graduação em Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Escola da Reabilitação da ABBR tiveram início em abril de 1956, de acordo com os moldes curriculares da Escola de Reabilitação da Columbia University. No ano seguinte, em setembro de 1957, o Centro de Reabilitação da ABBR foi inaugurado pelo Presidente da República, Juscelino Kubitscheck.

Outras organizações filantrópicas surgiram no contexto da epidemia de poliomielite, como a Associação de Assistência à Criança Defeituosa (AACD) de São Paulo (hoje Associação de Assistência à Criança Deficiente), fundada em 1950. 1 O Instituto Bahiano de Reabilitação (IBR) de Salvador, criado em 1956; e a Associação Fluminense de Reabilitação (AFR) de Niterói, fundada em 1958. Alguns hospitais tornaram-se centros de referência na reabilitação de pessoas com sequelas de poliomielite, a exemplo do Hospital da Baleia e do Hospital Arapiara, ambos em Belo Horizonte - MG.

1 embora a AACD tenha sido fundada antes da ABBR, seu centro de reabilitação começou a atender o público somente em 1963.

O perfil dos usuários dos centros de reabilitação modificou significativamente, no Brasil, a partir da década de 1960. A consolidação da urbanização e da industrialização da sociedade e o êxito das campanhas nacionais de vacinação provocaram dois efeitos: diminuíram os casos de sequelas por poliomielite e aumentaram os casos de deficiência associados a causas violentas, principalmente acidentes automobilísticos (carro e moto), de mergulho e ferimentos ocasionados por armas de fogo.

O surgimento da reabilitação física suscitou o modelo médico da deficiência, concepção segundo a qual o problema era atribuído apenas ao indivíduo. Nesse sentido, as dificuldades que tinham origem na deficiência poderiam ser superadas pela intervenção dos especialistas (médicos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, assistentes sociais e outros). No modelo médico, o saber está nos profissionais, que são os principais protagonistas do tratamento, cabendo aos pacientes cooperarem com as prescrições que lhes são estabelecidas.

Embora esse modelo representasse avanço no atendimento às pessoas com deficiência, ele se baseia em uma perspectiva exclusivamente clinicopatológica da deficiência. Ou seja, a deficiência é vista como a causa primordial da desigualdade e das desvantagens vivenciadas pelas pessoas. O modelo médico ignora o papel das estruturas sociais na opressão e exclusão das pessoas com deficiência, bem como desconhece as articulações entre deficiência e fatores sociais, políticos e econômicos.

Tanto os institutos do Império, voltados para a educação de cegos e surdos, quanto as organizações surgidas na República, direcionadas às pessoas com deficiência intelectual e à reabilitação, embora não tivessem nenhum cunho político claramente definido, propiciaram, mesmo que para poucos, espaços de convívio com seus pares e discussão de questões comuns. Nesse sentido, contribuíram para forjar uma identidade das pessoas com deficiência. Foram precursoras, naquele momento, da formulação do ser cego, surdo, deficiente intelectual e deficiente físico não apenas na denominação, mas em sua identificação como grupo social.

Todas as iniciativas, desde o Império até a década de 1970, são parte de uma história na qual as pessoas com deficiência ainda não tinham autonomia para decidir o que fazer da própria vida. Todavia, entre as pessoas com deficiência, esse foi um período de gestação da necessidade de organização de movimentos afirmativos dispostos a lutar por seus direitos humanos e autonomia, dentre os quais se destaca a capacidade de decidirem sobre a própria vida.