Ally e Ryan

Ally e Ryan

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Famílias de pessoas com doença rara contam luta por tratamento

Além dos transtornos de saúde, ser acometido por doença ou síndrome rara requer espírito de luta contra a burocracia

Ser portador de doença, síndrome ou problema genético raro, no Brasil, requer muito espírito de luta. Ainda mais quando a ocorrência se dá longe dos centros de diagnóstico e tratamento.

Durante 54 dias, o casal de jovens militares Fernando Lins Boechat e Thamires Ramos Melo Boechat, ambos com 24 anos, encampou uma sufocante luta contra a burocracia para garantir tratamento ao recém-nascido Guilherme.

Vítima da sequência de Pierre-Robin (falha na formação genética caracterizada por crianças que nascem com o queixo inferior em relação ao restante da face), o garoto estava preso ao tubo de oxigênio para poder sobreviver.

Com dificuldades respiratórias – a sequência, explica a pediatra Ilza Lazarini Marques, da USP/Centrinho, faz com que a língua da criança obstrua a respiração – o menino só foi livrado do oxigênio induzido quando os pais, cariocas que moram em Manaus, a trabalho na Marinha do Brasil, conseguiram sua remoção para o centro especializado em Bauru.

Para o casal, a descoberta de que o primeiro filho era acometido pela sequência rara (o maior expoente do problema, que é genético, é o falecido sambista Noel Rosa) – atinge uma a cada oito mil crianças nascidas vivas – só não foi mais chocante porque a luta que viria, na sequência, ganhou toda a atenção dos militares. “Foi uma surpresa. Nada foi detectado durante a gravidez, apenas no nascimento. Desde então tentamos a transferência para cá”, relata Fernando.

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Apesar de contar com plano de saúde, o casal não esperava pela burocracia que impediria a transferência imediata do pequeno Guilherme em UTI aérea até Bauru. “No Rio de Janeiro não havia UTI e ele precisava de oxigênio, sem condições de ser transferido para lá. No nosso plano de saúde não tínhamos adquirido previamente a UTI aérea. Manaus é uma ilha, ou você sai de lá de barco ou de avião”, descreve. “Não haviam condições de transportá-lo embarcado. São cinco dias até Belém e de lá tomar um avião ou, aí sim, seguir por rodovia”, acentua. Thamires completa: “De UTI aérea entre Manaus e São Paulo foram mais de sete horas”, contabiliza ela.

Saga pelo tratamento

Uma das maiores dores de cabeça que o casal enfrentou para garantir uma rápida remoção do garoto para o Estado de São Paulo foi para driblar a burocracia. Após contratar o serviço de UTI aérea, Fernando conta que foi obrigado a aguardar todo o trâmite da papelada para poder embarcar o garoto rumo ao tão necessário tratamento.

“Não houve (período de) carência, mas a burocracia emperrou. Ele nasceu no dia 14 de outubro. No dia 17 fizemos a solicitação. Nos informaram que o trâmite sai todo o dia 15 de cada mês. Ou seja, só ocorreria no próximo (no caso, novembro). Estamos aqui desde o dia 6 de dezembro. Foram 54 dias”, conta.

Ele tentou entrar na Justiça para abreviar o trâmite da papelada. No entanto, lamenta, a tentativa de embarcar Guilherme por meio de medida liminar não surtiu resultado. “Era só questão de documento, passar por pessoas, mas foi negado pelo juiz”, lamenta Boechat. “Manaus é uma cidade grande, desenvolvida, mas com o poder ainda muito concentrado em famílias”, afirma. “Há muita politicagem. O próprio advogado nos disse que eram colocados na balança os pesos da saúde de um recém-nascido e eventual prejuízo financeiro de uma instituição. Geralmente, dizia-nos, sobressaia a saúde. Não foi o nosso caso”, protesta o pai.

Por meio de uma técnica que emprega cânula nasal, o garoto, após 54 dias de aperto, como o próprio Fernando diz, praticamente “desmamou” do oxigênio e agora é preparado para poder, de fato, ser amamentado, já que ainda depende de alimentação por sonda. “O próximo passo é sair da cânula, estabilizar a língua e depois disso aprender a mamar”, vislumbra a mãe de Guilherme.

Grande ajuda, baixa divulgação

Fernando e Thamires, apesar dos percalços, se dizem aliviados pelo fato de contarem com plano de saúde. Entretanto, eles admitem que outros fatores pesam sobre os ombros de quem encara milhares de quilômetros em busca de tratamento médico adequado.

Deslocamento, despesas com alimentação e estadia, sem contar com medicamentos, caríssimos para portadores, no caso, de doenças raras, engrossam o caldo de quem não tem condições financeiras sequer para manter um nível razoável de qualidade de vida sem problema algum de saúde.

É para isso que, oficialmente, serve o programa TFD, ou Tratamento Fora de Domicílio.

A medida, instituída há mais de uma década pelo Ministério da Saúde, é um instrumento legal que visa garantir, através do Sistema Único de Saúde (SUS), atendimento a pacientes acometidos por doenças não tratáveis em seus municípios de origem por falta de condições técnicas. O programa consiste em ajuda de custo ao paciente e, em alguns casos, ao acompanhante, para buscar atendimento em outro município ou Estado.

Contudo, uma boa parte das pessoas que mereceria o custeio enfrenta dificuldades e é obrigada a procurar a Justiça para obter o benefício.

A dona de casa Gislaine Roja de Souza, de 32 anos, não chegou ao ponto de engrossar a lista de processos em busca de auxílio para tratamento médico. Não foi necessário, após ela chegar a um acordo com a Prefeitura de Maracajú, no Mato Grosso do Sul.

Mãe do menino Alan, de seis, meses, também com a sequência de Pierre-Robin, outra criança em tratamento no berçário do Centrinho, Gislaine diz que os gestores de seu município de origem custeiam as viagens periódicas que o marido faz a Bauru. A prefeitura sul-matogrossense, segundo ela, também custearia seu retorno ao Estado de origem.

Alan, conta a mãe, precisou ser submetido a uma cirurgia para “puxar” o queixo para frente. “Foi muito difícil no começo. Ele veio para cá com grau três de desnutrição e abaixo do peso”, comenta ela, há três meses em Bauru. “Hoje ele está bem melhor. Vamos passar as festas em casa e voltamos para cá no começo de janeiro”, projeta.

‘Não pense no problema, e sim na pessoa’

O ensinamento acima é de Edna Aparecida Biroli do Nascimento, moradora dos Altos da Cidade, em Bauru. Mãe de José Felipe, de 17 anos, portador da síndrome de Rubinstein Taybi (deficiência de origem genética caracterizada, principalmente, pelos polegares invertidos e atraso no desenvolvimento motor e mental), ela orgulha-se do espírito batalhador que demonstra, desde quando o problema foi diagnosticado.

Logo quando “Zezé”, apelido do caçula, nasceu, conta ela, os dedos curvados davam indício de que algo errado havia. Diferentemente dos pais modernos, que encontram na internet e suas redes sociais um forte amparo na busca por ajuda, ela teve dificuldades em encontrar, nos idos de 1994, auxílio tão rápido.

Atualmente assistido pelo Centro de Reabilitação Sorri, em Bauru, José Felipe é uma das 140 crianças e adolescentes que possuem a síndrome em todo o País. De tão raro, contabiliza a mãe dele, o problema é diagnosticado atualmente em 700 pessoas no mundo inteiro.

Com toda a adversidade na busca por tratamento adequado ao filho, que encara uma “maratona” entre consultórios de psicologia, fonoaudiologia, fisioterapia e agora ortopedia, devido a uma escoliose, a mãe sintetiza o sentimento que não a faz esmorecer. “Não pense no problema, e sim na pessoa”, ensina.

E não é para menos. Na falta de um problema raro em casa, ela ainda convive com uma enfermidade enfrentada pelo marido, acometido pela Doença de Behcet (inflamação dos vasos sanguíneos, por causas ainda desconhecidas, causadas por alterações no sistema imunológico. Neste caso, o problema engrossou as prateleiras do judiciário. “Tivemos que acionar a Justiça para conseguir o medicamento. Cada ampola custa R$ 4 mil”, contabiliza ela, afirmando que o medicamento é aplicado a cada duas semanas.

“Síndrome de culpa”

No caso da sequência de Pierre-Robin, a falha é genética, sem qualquer parcela de responsabilidade dos pais. No entanto, até mesmo pela falta geral de informação da população, há quem acredite que eventuais problemas, como a má-formação, seja resultado de eventuais deslizes, como, por exemplo, ingestão de algum tipo de substância que venha a prejudicar o desenvolvimento do feto.

“Fiquei assustada, pensei no que eu tinha feito para que ele nascesse assim. Meu pai mesmo me perguntou se eu tinha tomado alguma coisa, de certo algum remédio forte”, recorda Gislaine. “O médico me explicou que ele havia sido formado de um jeito, gerado assim. A mãe geralmente é a culpada, ela é quem gera”, resigna-se. “Até a gente explicar que não se trata de culpa da gente ou do esposo”, desabafa.

As “lendas” em torno de problemas raros ainda frutificam da falta de informação, que, por sua vez, decorre do pouco tempo com que as malformações, e respectivos tratamentos, são desenvolvidos. “Na realidade, até há pouco tempo, a sequência não era muito conhecida. A forma como tratar ainda é muito discutida. Aqui (no Centrinho) desenvolvemos os primeiros estudos sobre o tratamento da sequência de Pierre-Robin”, enfatiza a pediatra Ilza Lazarini Marques.

Segundo ela, as pesquisas em Bauru tiveram início no final dos anos 1990, época em que era grande o contingente de crianças que morriam em decorrência do problema genético. “Estávamos muito preocupados. A gente buscava resposta e encontrava muitas controvérsias”, recorda.

Contudo, o fato do complexo em Bauru ser o melhor do País na pesquisa e tratamento de anomalias craniofaciais preponderou para que a sequência ganhasse as melhores formas de tratamento. “Concentramos um número grande de pacientes. Encontramos, assim, subsídios para estudar sobre o que fazer com as crianças. Estamos muito contentes porque nossa taxa de mortalidade, atualmente, é de zero”, comemora a médica, afirmando que os desafios do hospital, no campo da pesquisa, aumentam gradativamente à quantidade de pacientes que recebe. “O perfil dos nossos pacientes está mudando. Antes tínhamos casos mais simples. Agora estão cada vez mais complexos”, compara ela, creditando a chegada de novos pacientes à maior difusão de informação através de blogs e redes sociais. “As pessoas buscam hospitais com uma complexidade maior. Desta forma, nossa casuística aumenta”, relaciona.

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