O Associativismo das Pessoas com Deficiência
Mário Cléber Martins Lanna Júnior.
Capítulo 2.
A partir de meados do século XX, é possível observar o surgimento de organizações criadas e geridas pelas próprias pessoas com deficiência. A motivação inicial é a solidariedade entre pares nos seguintes grupos de deficiência: cegos, surdos e deficientes físicos que, mesmo antes da década de 1970, já estavam reunidos em organizações locais - com abrangência que raramente ultrapassava o bairro ou o município–, em geral, sem sede própria, estatuto ou qualquer outro elemento formal. Eram iniciativas que visavam ao auxílio mútuo e à sobrevivência, sem objetivo político prioritariamente definido. Essas organizações, no entanto, constituíram o embrião das iniciativas de cunho político que surgiriam no Brasil, sobretudo durante a década de 1970.
O movimento associativista dos cegos.
A criação do sistema Braille, em 1829, inaugurou “a era moderna” da história das pessoas cegas, promovendo uma verdadeira revolução no processo de ensino e aprendizagem dos cegos. A partir de então, a institucionalização da educação e da profissionalização dos cegos ganhou impulso, e o Braille se configurou como a forma mais efetiva de escrita e leitura para pessoas cegas. No entanto, a progressiva proliferação das instituições especializadas em educação de cegos em todo o mundo, por si só, não lhes garantiu integração na sociedade, acesso a direitos, nem fim do preconceito e do estigma associado à cegueira.
A partir da década de 1950, no Brasil, observa-se um novo modelo de organização das pessoas com deficiência visual – o modelo associativista. As primeiras associações de cegos surgiram no Rio de Janeiro, resultado de interesses eminentemente econômicos. Os associados eram, em geral, vendedores ambulantes, artesãos especializados no fabrico de vassouras, empalhamento de cadeiras, recondicionamento de escovões de enceradeiras e correlatos. Ao contrário dos asilos, hospitais e mesmo das escolas especializadas, fruto da caridade e da filantropia ou de iniciativas governamentais, as novas associações nasciam da vontade e da ação dos indivíduos cegos que buscavam, no associativismo, mecanismos para a organização de suas lutas e melhoria de sua posição no espaço social.
Evidências do associativismo dos cegos podem ser encontradas em tempos remotos, mais precisamente no século XIX, em 1893, quando um grupo formado por ex-alunos e professores do Instituto Benjamin Constant (IBC) criou o Grêmio Comemorativo Beneficente Dezessete de Setembro. Inspirado em associações similares encontradas na Europa, o Grêmio visava comemorar a data de fundação do Instituto, promover a educação do cego, apoiar ex-alunos em questões de empregabilidade e sensibilizar a sociedade em relação ao preconceito.
Essas novas associações são marcadas pela “ambiguidade original” porque estão situadas em uma cultura que legou aos cegos soluções que apontavam ora para a exclusão, ora para práticas de caridade e filantropia. Por conseguinte, as associações reproduzem, em suas práticas e ações, um modo de agir que, ao mesmo tempo em que reforça o estigma e a discriminação, combate frontalmente esses códigos culturais.
O modelo associativista dos cegos nasceu em um momento de transição de duas visões de mundo: do modelo médico ao modelo social com base nos Direitos Humanos. Nessa época de transição, houve aumento na impressão de livros em Braille, com a instalação da imprensa Braille na Fundação para o Livro do Cego no Brasil, criada em 1946 – atualmente denominada Fundação Dorina Nowill para Cegos –, para possibilitar a educação dos cegos e ampliar o acesso à leitura. A Fundação foi criada por iniciativa de algumas normalistas do colégio Caetano de Campos, em São Paulo. Entre as normalistas estavam Neith Moura e Dorina Nowill que, durante o curso normal, criaram um grupo experimental de educação de cegos que desenvolvia metodologias de ensino e transcrevia manualmente livros para o Braille. O trabalho de transcrição para o Braille transformou-se, após algum tempo, na Fundação para o Livro do Cego no Brasil.
Na década de 1950, fato marcante foi o Conselho Nacional de Educação autorizar que estudantes cegos ingressassem nas faculdades de Filosofia.
Novas organizações associativistas surgiram no início da década de 1960, quando as pessoas com deficiência visual fomentaram o debate contra a Campanha Nacional de Educação dos Cegos, e sobre o internamento de cegos em instituições. Essa prática era questionada, considerada fator de exclusão e de reforço à discriminação. O debate contribuiu para o crescimento do número de associações criadas por pessoas com deficiência visual. Essas novas associações se diferenciavam de suas precedentes, surgidas na década de 1950, pois defendiam interesses amplos da pessoa com deficiência muito além da questão econômica: lutavam por educação, profissionalização, cultura e lazer.
Ao lado do associativismo local, desenvolvia-se e consolidava-se o estatuto da “representação nacional” com o objetivo de organizar o movimento em todo o País, estabelecer uma ponte de diálogo entre as entidades locais, o governo e as instituições da sociedade civil, representar a coletividade cega brasileira e lutar em defesa de suas necessidades fundamentais.
A primeira entidade nacional foi o Conselho Brasileiro para o Bem-Estar dos Cegos (CBEC), fundado no Rio de Janeiro, em 1954. O Conselho foi criado por iniciativa de Dorina Nowill e do diretor do IBC, Dr. Rogério Vieira, que, após se reunirem com representantes de outras organizações, decidiram criar a entidade, que teve Dorina Nowill como primeira presidente. O Conselho era filiado ao Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos.
O Conselho Mundial para o Bem-estar dos Cegos transformou-se na União Mundial dos Cegos (World Blind Union), que é atualmente a principal organização de cegos no mundo. A União Mundial dos Cegos foi criada em 1984, quando o Conselho Mundial e a Federação Internacional dos Cegos se fundiram no novo órgão.
O movimento dos surdos: Língua Brasileira de Sinais, cultura e identidade surda.
Com a instalação das escolas para surdos, surgiu também a disputa sobre o melhor método de educação de surdos: a Língua Brasileira de Sinais, o oralismo ou a mista. No final do século XIX, a Língua de Sinais sofreu grande revés. Em 1880, no Congresso Internacional de Professores de Surdos, em Milão, Itália, o método oral foi escolhido como o melhor para a educação dos surdos. A Língua de Sinais foi proibida oficialmente em diversos países, sob a alegação de que destruía a habilidade de oralização dos surdos. Tal proibição despertou o que alguns autores chamam de “isolamento cultural do povo surdo”, já que a proibição dessa língua tem por consequência a negação da cultura e da identidade surdas. Seguindo a orientação do Congresso de Milão, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos também proibiu a Língua de Sinais. Como consequência dessa proibição, observou-se o declínio do número de professores surdos nas escolas para surdos e o aumento dos professores ouvintes.
Essa proibição criou o que alguns estudiosos contemporâneos chamam de “ouvintismo”, que seria o conjunto de representações dos ouvintes a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte.
O termo é uma analogia a colonialismo e colonialista. As práticas ouvintistas são um conjunto de estratégias e ações que podem ser tanto físicas, visíveis ao corpo do surdo – como as próteses auditivas –, quanto subjetivas, como as formas de disciplinar o surdo; as normas, os costumes, jeitos e trejeitos ouvintes que impõem esses sujeitos ao ouvintismo, às práticas de normalização que imprimem uma forma de ‘ser surdo ouvintizado.
Os alunos surdos eram proibidos de usar a Língua de Sinais; assim, para impedir-lhes o uso, foram adotadas medidas extremas tais como: forçar os alunos a manter os braços cruzados, amarrar as mãos, comparar quem usava a língua de sinais com macacos. Os códigos não foram eliminados, mas conduzidos ao mundo marginal.
Os movimentos dos surdos passaram, então, a constituir-se como uma resistência às práticas “ouvintistas”. Esses movimentos se dão em espaços como as associações, as cooperativas e os clubes – territórios livres do controle ouvinte –, onde os surdos estabeleciam intercâmbio cultural e linguístico e faziam uso da Língua de Sinais. Grande parte das associações de surdos surgiu exatamente nos períodos de maior ênfase à oralidade e à negação da diferença, envolvendo o final do século XIX até aproximadamente as décadas de 1960 e 1970. Ou seja, um dos principais fatores de reunião das pessoas surdas era, e ainda é, o uso e a defesa da Língua de Sinais.
No Brasil, há registros de que, no final da década de 1930, um grupo de surdos ex-estudantes do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) fundou a Associação Brasileira de Surdos-Mudos no Rio de Janeiro. Uma segunda associação foi fundada em maio de 1953 com a ajuda de uma professora de surdos, Ivete Vasconcelos. Além disso, os ex-estudantes do INES voltavam para suas cidades de origem e criavam associações de surdos, tais como a Associação de Surdos-Mudos de São Paulo, fundada em março de 1954, e a Associação de Surdos de Belo Horizonte, em 1956.
A origem da organização dos surdos brasileiros também tem fortes ligações com o esporte, daí ter sido fundada, em 1959, a Federação Desportiva de Surdos do Rio de Janeiro, com o nome de Federação Carioca de Surdos-Mudos.
A Federação Carioca de Surdos-Mudos era liderada por Sentil Delatorre e reconhecida pelo Conselho Nacional de Desportos e pela Confederação Brasileira de Futebol. Posteriormente, filiou-se ao Comitê Internacional de Esportes dos Surdos. Com o crescimento da prática desportiva de surdos, Sentil Delatorre tomou a iniciativa de convocar uma assembleia geral que, em novembro de 1984, no auditório do INES criou a Confederação Brasileira de Desporto para Surdos.
O movimento internacional de surdos se articulou sob coordenação da Federação Mundial de Surdos (Word Federation of the Deaf – WFD), criada em 1951 e com sede na Finlândia. Articulando-se com os organismos ligados às Nações Unidas, os líderes surdos procuraram, a partir daí, interferir nas políticas e nas recomendações apresentadas aos governos dos seus países. A WFD teve influência decisiva nas recomendações da UNESCO, em 1984, no reconhecimento formal da Língua de Sinais como língua natural das pessoas surdas, garantindo que crianças surdas tivessem acesso a ela o mais precocemente possível.
A cultura surda e a Língua de Sinais ganharam importantes argumentos em sua defesa quando, em meados de 1960, o linguista Willian Stokoe publicou o livro Language Structure: an outline of the visual communication system of the american deaf (Estrutura de Linguagem: uma abordagem do sistema de comunicação visual do surdo americano), no qual afirma que a língua de sinais americana tinha todas as características da língua oral. Ao se conferir status de “língua” à Língua de Sinais, os surdos puderam reafirmar com mais força e argumentação o seu pertencimento a uma comunidade linguística que lhes provê uma cultura e uma identidade próprias.
Não há como negar a complexidade que existe nas relações entre cultura, linguagem e identidade; mas também não se pode negar que o fato de pertencer a um mundo de experiência visual e não auditiva traz uma marca identitária significativa para essa parcela da população, que reafirma sua diferença perante o mundo ouvinte e, assim, legitima sua luta por direitos e pela sua existência como cidadãos.
Organização das pessoas com deficiência física
Os deficientes físicos também se associaram em entidades voltadas para a sobrevivência e a prática do esporte adaptado. Essas organizações, que não tinham objetivos políticos definidos, foram os primeiros espaços em que as pessoas com deficiência física começaram a discutir os problemas comuns. São exemplos dessas organizações: a Associação Brasileira de Deficientes Físicos (Abradef) e o Clube do Otimismo, ambos do Rio de Janeiro; o Clube dos Paraplégicos de São Paulo; e a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCDD), atualmente Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência do Brasil (FCD-BR), presente em várias cidades do Brasil. Muitas dessas associações foram criadas com o intuito de viabilizar formas de obter recursos financeiros para a sobrevivência de seus filiados.
Nesse sentido, organizavam, por exemplo, translado para que os grupos de deficientes físicos fossem até locais de grande circulação de pessoas vender balas, quitandas ou outras mercadorias de pequeno valor. É possível perceber um apelo à caridade para que os consumidores comprassem as mercadorias.
As associações esportivas.
Outras formas de associação de deficientes físicos comuns nesse período foram as organizações voltadas para a prática de esporte. O desenvolvimento do esporte adaptado no mundo ocorreu, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial. A partir de 1946, começaram a surgir, nos Estados Unidos e na Inglaterra, os primeiros movimentos organizados de esporte para pessoas com deficiência. Na década de 1950, o esporte adaptado se popularizou em todo o mundo.
No Brasil, os primeiros clubes foram fundados em 1958: Clube dos Paraplégicos de São Paulo e Clube do Otimismo do Rio de Janeiro. Ambos os clubes foram fundados por atletas que ficaram com lesão medular em certo momento da vida e que tiveram a oportunidade de se tratar nos Estados Unidos, onde conheceram o esporte adaptado. Em São Paulo, o fundador foi Sérgio Del Grande e, no Rio de Janeiro, Robson Sampaio. Essas iniciativas tiveram como efeito secundário o início da percepção, pelas pessoas com deficiência, da necessidade de discutirem sua inserção política na sociedade. As próprias dificuldades enfrentadas tanto para a prática do esporte quanto no trabalho precário, como a venda de mercadorias de pequeno valor estimularam o início de reivindicações, sobretudo no que se refere à mobilidade. Com o passar do tempo, assumiram cunho cada vez mais político.
Isso ensejou, no final da década de 1970, no contexto da redemocratização do Brasil, o surgimento de organizações de pessoas com deficiência, com caráter claramente definido e com o objetivo de conquistar espaço na sociedade, direitos e autonomia para conduzirem a própria vida.
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