Mara O. de Campos Siaulys*
Brincar, brincadeira, brinquedos, jogos, brinquedotecas, lúdico, ludicidade, recreação, fantasia, palavras mágicas que lembram crianças, convivência, alegria, cumplicidade, desafio e movimento. O brinquedo sempre foi importante para a criança e para muitos adultos que sabem valorizar esse importante instrumento de interação e comunicação. Nos dias atuais, o brincar provoca um grande interesse nas pessoas e é com alegria que vemos a brincadeira e o brinquedo reconhecidos como parte importante da vida das crianças e fundamentais para seu desenvolvimento.
Os brinquedos sempre foram amados pelas crianças. No passado, quando eram simples e sem a sofisticação de hoje, talvez as atraíssem mais. Havia aqueles confeccionados com materiais caseiros, como bonecas de pano, feitas pela mamãe ou vovó, os carrinhos de rolemã, cavalinhos de cabo de vassoura, estilingues de forquilha de árvore, trenzinho de caixa de papelão, aviõezinhos de papel, pipas. Antigamente muitas crianças confeccionavam os brinquedos, o que enriquecia a brincadeira e criava mais oportunidade de aprender. Hoje, com a oferta de brinquedos sofisticados, o interesse e a motivação de construí-los diminuíram.
Mas as crianças continuam inventando brincadeiras e se divertindo, principalmente as de famílias com menor poder aquisitivo. As crianças da periferia de grandes centros urbanos brincam de forma muito arriscada algumas vezes, pendurando-se em ônibus, andando nos trilhos de trens, usando skates em avenidas movimentadas ou soltando pipas em áreas cheias de fios de eletricidade.
Em fevereiro de 2001, vimos a seguinte notícia em um jornal paulista:
“A escola de samba Imperador do Ipiranga desfila hoje, no Sambódromo de São Paulo com enredo “Sonhando, brincando e sambando – toda criança tem um brinquedo no coração”. Os 3.000 integrantes levarão cataventos, peões, bolas, bonecas de pano e blocos de montar, procurando mostrar a história do brinquedo no Brasil. Desfilarão brinquedos indígenas, os trazidos da Europa na época do Império, os que vieram com os negros africanos, alguns bem populares do tempo da vovó, brinquedos produzidos por indústrias, até brinquedos futuristas, da era cibernética”. (Suplemento infantil da Folha de S. Paulo – Fevereiro de 2001)
Que ideia interessante! Dar a tantas pessoas a oportunidade de conhecer os brinquedos usados pelas crianças brasileiras nos cinco séculos de história do Brasil, por meio de um veículo tão popular e empolgante, como o enredo de uma escola de samba, em um desfile carnavalesco!
Uma semana depois, uma revista dominical publicava a seguinte notícia:
“Crianças residentes em apartamentos situados em bairros de classe média alta de São Paulo, brincando de assalto, tiros, perseguições policiais, seqüestro relâmpago e até rebelião da Febem”.
As crianças que antigamente empunhavam revólveres e espadas por influência da televisão e de histórias em quadrinhos, hoje encenam brincadeiras que refletem a realidade que vivenciam em seu dia-a-dia, a violência reinante na vida da metrópole, a que se acrescentam as cenas grotescas apresentadas nos filmes que assistem a qualquer hora na televisão. Vemos hoje crianças representando em seus brinquedos o atentado do World Trade Center ou jornais exibindo fotos de crianças se divertindo felizes e rolando pneus de bicicleta, em meio a destroços em campos de refugiados no Paquistão. Isso nos mostra como a criança brinca em qualquer circunstância e como se organiza para que as brincadeiras estejam presentes em sua vida.
A professora Adelaide Resende de Souza, psicóloga, mestre em Teoria e Pesquisa do Comportamento, observou durante dois anos as brincadeiras de crianças residentes em uma área de ocupação irregular na cidade de Belém do Pará, e suas conclusões mostram a forma interessante dessas crianças, extremamente carentes, se organizarem. Os adultos estão ausentes e elas são responsáveis por si mesmas e pelos menores, não dispõem de brinquedos, a não ser objetos que encontram no ambiente, como pedaços de madeira, pedras, restos de cordas, etc. Durante a observação, ela coletou quarenta brincadeiras diferentes e pôde ver a forma como as crianças resolvem seus conflitos, sem agressividade, criando suas próprias regras que são garantidas pelo próprio grupo. Ela viu que as crianças desenvolvem comportamentos sociais de cooperativas, alianças e cuidados com os menores. Embora surgissem conflitos em alguns momentos, elas usavam as regras para resolver de maneira pacífica seus impasses, e raramente partiam para agressões e embates físicos. Demonstraram claramente a contribuição das brincadeiras para o aprimoramento das habilidades sociais.
De acordo com o mestre Rubem Alves, “Professor bom não é aquele que dá uma aula perfeita, explicando muito bem a matéria. Professor bom é aquele que transforma a matéria em brinquedo e seduz o aluno a brincar. Depois de seduzido o aluno, não há quem o segure”.
Minha convicção de que brincar é a forma mais feliz, simples e efetiva de interagir com a criança e de que, com a brincadeira, eles se desenvolvem de forma espontânea, vem de muito tempo. Quando jovem, concluindo o curso de magistério, utilizei em uma prova brincadeiras, balas e brinquedos para introduzir conceitos matemáticos. Posteriormente, quando lecionei geografia a adolescentes de 5ª a 8ª séries, iniciei a busca por um caminho para transformar as aulas em momentos produtivos e agradáveis para todos, onde a convivência, as trocas e o aprendizado acontecessem de forma leve e espontânea. Procurei então buscar estratégias para motivar meus alunos. Sabia que se conseguisse transmitir-lhes meu entusiasmo por essa disciplina, sua participação nas aulas seria maior, a curiosidade seria despertada e a aprendizagem natural.
Nos últimos anos de magistério, usando dinâmica de grupo, com jogos e brincadeiras sugeridos pelo professor Celso Antunes, professor e escritor, meu colega de faculdade, encontrei finalmente a fórmula tão procurada. Minhas aulas se transformaram em momentos de trabalho produtivo, com grande interesse e envolvimento dos alunos nas atividades alegres e divertidas.
Foi uma vitória perceber que havia encontrado um caminho prazeroso e, ao mesmo tempo, eficaz de motivá-los ao estudo da Geografia, conseguindo o objetivo que havia perseguido por tantos anos. Nessa época, adquiri a certeza de que devemos proporcionar às crianças numerosas e variadas oportunidades de brincar, o melhor caminho para que desenvolvam seu potencial, sejam felizes e se preparem para serem adultos integrados e participantes.
Quando Lara, minha filha caçula, nasceu, tive que desviar o interesse e amor pela geografia. Lara é cega e eu precisava aprender rapidamente como educá-la. A descoberta de sua cegueira levou-me a uma busca insistente de conhecer tudo sobre o assunto. Como nada sabia a respeito da educação da criança cega, de como agir para que ela conhecesse o mundo usando os outros sentidos, comecei do zero como qualquer mãe que se depara com o mesmo problema. Um longo e fascinante aprendizado! Procurar a melhor maneira de ajudá-la a ter contato com o ambiente, interagir com pessoas e objetos. Sentia a importância de não perder tempo e agir rapidamente, apoiando-a para que se desenvolvesse como qualquer criança. Fui buscar recursos e informações que me ajudassem nessa tarefa. Há vinte anos eles eram escassos e contraditórios, só contribuindo para que me sentisse mais desorientada.
Teria muito tempo pela frente para me aprofundar no estudo, porém naquela situação tinha que agir, era a hora de Lara. Como fazê-lo? Comecei brincando, não conhecia outra maneira.
Usei a intuição e senti ser esta a melhor forma de interagir e me comunicar com ela. Foi com brincadeiras, conversas, contato corporal e participação dela em tudo o que acontecia ao nosso redor que fomos encontrando um caminho, juntas.
Talvez o fato de ser mãe e educadora explique minha crença na magia que envolve o ato de aprender. Com a chegada de Lara, a professora cedeu lugar à aluna e a mãe cresceu.
Com ela aprendi muito sobre meu trabalho e sobre educação de crianças com deficiência visual. As outras crianças com as quais tenho convivido nestas duas décadas foram acrescentando muito mais, enriquecendo meu conhecimento e experiência.
Descobri que o essencial é o respeito à criança. Precisamos ouvi-la para melhor compreender seus anseios, fantasias e sentimentos. E o mais importante, é preciso que demonstremos isso a ela muitas vezes, com palavras e ações! Valorizei ainda mais a necessidade de ser a convivência com a criança muito alegre, cheia de otimismo e descontração. Compreendi o óbvio: como é importante o brincar para o desenvolvimento infantil. Pude também comprovar que é imprescindível que a criança tenha convivência, interação e participação na vida da família, na escola e em toda a comunidade. E isso será facilitado pelas brincadeiras e pelos brinquedos.
A convivência com Lara e com todas as outras crianças cegas foi plena de desafios e aprendizagem. Com elas entendi como a criança com deficiência visual precisa muito mais do que as outras de brincadeiras e brinquedos. Compreendi que ela se desenvolve e se educa muito bem desde que sejam feitas algumas adaptações em seus materiais e brinquedos para que possa aprender com métodos adequados e que tenha oportunidade de interação e participação no ambiente.
À medida que Lara crescia e aprendíamos sobre sua educação, vendo-a transformar-se na pessoa que é, tão integrada e feliz, começamos a ter um sonho: compartilhar com outras crianças e outras famílias tudo o que sabíamos sobre sua educação, apoiar as famílias, dar oportunidade de educação a muitas crianças, mostrar a todos nossa crença no potencial de desenvolvimento da criança com deficiência visual.
Assim nasceu Laramara, Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual, em 1991. Laramara dedica-se ao desenvolvimento da criança e do adolescente com deficiência visual, apoiando-os para que se integrem melhor à família, escola e comunidade, usando para isso os mais avançados recursos e serviços.
A família é parte integrante da Instituição, recebendo dela todo o apoio e orientação sobre a educação da criança. Ela é sensibilizada para a importância do brincar, aprender a fazer brinquedos e a brincar e como tornar o ambiente rico em situações e materiais que estimulem os sentidos e promovam o desenvolvimento integral da criança.
Laramara sempre acreditou que a brincadeira é importante para ajudar a criança a movimentar-se, relacionar-se, expressar-se, aprender sobre o ambiente, dominar o espaço, conhecer a si própria e aos outros, desenvolver sua afetividade e auto-estima, tornar-se criativa, participante e feliz. Mostramos à criança e à família, desde que chegam à Instituição, como são importantes e bem-vindas e como podem aprender com alegria em nossos programas.
Os ambientes são coloridos, alegres, o brinquedo e o brincar estão presentes em todas as atividades propostas, integrando entre si todas as áreas.
O PROJETO BRINCANTO – GARANTINDO O PRAZER DE BRINCAR é um projeto transdisciplinar, que expressa a filosofia de Laramara: a crença no brinquedo e nas brincadeiras como meio de interagir com a criança e facilitar seu desenvolvimento. Garantir à criança o acesso a brinquedos e recursos adequados à sua educação e procurar envolver e motivar a família para que participe das atividades são objetivos de todos os programas.
Os brinquedos adaptados ou especialmente criados para as crianças cegas e com baixa visão que possam ser reconhecidos pelo tato e pelos outros sentidos tornam seu aprendizado alegre, significativo e prazeroso. Eles vão facilitar a aquisição de conceitos e habilidades, ajudá-la a desenvolver os sentidos, introduzir muitos objetos e materiais diferentes e dar à criança cega a oportunidade de ter contato com o braile desde pequena, da mesma forma como as crianças que enxergam têm com as letras comuns. Hoje nos dedicamos a criar brinquedos que sejam alegres para todas as crianças e que permitam às crianças com deficiência visual brincar junto com as outras, integrando-as e estimulando sua participação na vida familiar e na comunidade.
Convivendo com as crianças, sentimos suas necessidades e começamos a adaptar materiais. Foi assim que surgiu o CENTRO DE PRODUÇÃO DE BRINQUEDOS E MATERIAIS PEDAGÓGICOS, onde são fabricados cem brinquedos diferentes mostrados no catálogo Brincar Juntinhos, de Laramara, separados em nove seções. Com ele, procuramos divulgar esse material por todos o País, como contribuição para a educação de todas as crianças com necessidades educacionais especiais do Brasil. Eles fazem parte de nossa missão em Laramara, de proporcionar à criança deficiente visual o direito de brincar como qualquer criança, de poder estudar como os jovens de sua idade, de trabalhar e constituir família como qualquer adulto. Um direito assegurado a todas as pessoas há mais de 50 anos, estabelecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
*Mara O. de Campos Siaulys
Pedagoga Especializada em ensino de crianças com deficiência visual
Presidente da Laramara – Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual
Membro da Diretoria da IPA – Associação Brasileira pelo Direito de Brincar
Membro do Conselho da Associação Viva e Deixe Viver
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