Ally e Ryan

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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A deficiência e a questão do assistencialismo - Parte 1


Caro leitor,
Acompanhe o estudo do artigo "As práticas de cuidado e a questão da deficiência: integração ou inclusão" das pesquisadoras Vera Beatris Walber* e Rosane Neves da Silva**. Veja hoje, a primeira parte deste artigo. (Imagem ao lado é de Fra Angelico, obra intitulada "São Lourenço Distribui Bens aos Pobres")

Resumo
Pretende-se problematizar a constituição de diferentes práticas de cuidado com pessoas com deficiência e de como essas práticas expressam determinados modos de subjetivação. Tais práticas vão desde uma perspectiva assistencialista - relacionada tanto às estratégias caritativas associadas à Igreja, quanto as de patologização da deficiência provenientes de um discurso médico -, passando por práticas integrativas que visam adaptar a pessoa com deficiência à sociedade em que vive, até práticas inclusivas que pretendem colocar em questão o problema da deficiência na perspectiva de um direito à diferença.

Para tanto, foram utilizados o referencial teórico e a ferramenta metodológica da genealogia de Michel Foucault, a fim de desnaturalizar estas diferentes práticas e mostrar que, apesar de elas surgirem em contextos sócio-históricos distintos, estão presentes de forma simultânea em nossa sociedade e colocam a necessidade de se pensar a articulação entre subjetividade e política nas questões relativas ao campo da deficiência.

No século XV, a Inquisição manda para a fogueira os hereges, que eram considerados loucos, adivinhos ou pessoas com algum tipo de deficiência mental. Ainda naquele mesmo século é editado o "Martelo das Bruxas '; um livro "de caça às feiticeiras, adivinhos, criaturas bizarras ou de hábitos estranhos" (Ceccim, 1997, p.28). Pessoas com deficiência e, principalmente, com deficiência mental eram vistas como possuídas por espíritos malignos ou como loucas e foram assim levadas à fogueira.
Aranha (2001) afirma que em algumas cartas papais desse período podem ser encontradas orientações de como identificar e tratar tais pessoas. "A estes, se recomendava uma ardilosa inquisição, para obtenção de confissão de heresia', torturas, açoites, outras punições severas, até a fogueira" (Aranha, 2001, p.5).

Até o século XVI, crianças com deficiência mental grave eram consideradas como possuídas por seres demoníacos. Mesmo renomados intelectuais acreditavam que era o demônio que estava ali presente. Segundo o pensamento da época, "o demônio possui esses retardados e fica onde suas almas deveriam estar" (Silva, 1986, p.211). Surgindo estruturas cada vez mais complexas e sofisticadas de atendimento assistencial, esboço de uma profissionalização futura desse tipo de prática. A condição social dos pobres que recebem assistência suscita atitudes que vão desde a comiseração até o desprezo. Eram desprezados pela própria condição de pobreza na qual se encontravam e pelas condições físicas de deficiência e doença, mas também recebiam comiseração já que eram "alvo" da boa ação de outras pessoas.

Essa contradição se encontra em modos específicos da "gestão da pobreza", na economia da salvação: mesmo desprezado, o pobre pode, aceitando sua condição de pobreza, auxiliar os ricos para que esses pratiquem a caridade - a "suprema virtude cristã" - e obtenham assim a salvação. Dessa forma, os pobres também obteriam a sua própria salvação. A pobreza torna-se, portanto, um valor de troca na economia da salvação, assim como a doença e o sofrimento, prova inconteste da pobreza não só econômica, mas física. Doença e deficiência tornasse também um valor de troca nessa economia de salvação e na possibilidade de obter auxílio da comunidade.

Observa-se assim que pessoas doentes e com deficiência devem permanecer na condição de pessoas de segunda classe para continuar recebendo auxílio. Por outro lado, a prática assistencialista que valoriza esse tipo de relação mantém e fixa as pessoas na posição de subalternas. Para Castel (1998), essas pessoas fazem parte de uma zona intermediária de vulnerabilidade social, que pode se dilatar, avançando sobre a integração e alimentando a desfiliação em casos de crises econômicas, aumento do desemprego ou do subemprego. No entanto, sempre haverá pessoas nessa zona limite entre a integração e a desfiliação. Pessoas com deficiência, em uma grande parcela, fazem parte dessa zona de vulnerabilidade social que alimenta a caridade e o assistencialismo.

São pessoas, na grande maioria, fora do mercado de trabalho, com pouco nível de instrução e acostumadas a receber auxílio e assistência de diversos grupos sociais. Assim, a caridade e o assistencialismo mantêm as pessoas com deficiência nesse lugar de necessitados, fixam-nos na zona de vulnerabilidade social, impedindo que aumente a tensão entre a demanda por integração e a possibilidade de desfiliação. A tensão permanece suportável e retro alimenta o assistencialismo. A partir do século XVI começa a haver um deslocamento das práticas de cuidado com pessoas com deficiência. A deficiência passa a ser um problema médico e não somente assistencial, embora uma lógica assistencialista continue presente nesse novo modelo. Segundo Pessotti (1984), as primeiras reações contra a idéia de que a deficiência era ligada ao demônio partiram dos médicos Paracelso e Cardano que consideravam a deficiência como problema médico e digno de tratamento e complacência.

O saber médico sobre a deficiência começa a ser produzido e para Cardano e Paracelso os deficientes poderiam ser treinados e tinham direitos a essa educação. Não era mais possível negar a responsabilidade social e política em relação a esse grupo de pessoas. No entanto, ainda não se fala sobre a inclusão de pessoas com deficiência na sociedade ou na escola junto com outras crianças. Para solucionar o problema: "A opção intermediária é a segregação: não se pune nem se abandona o deficiente, mas também não se sobrecarrega o governo e a família com sua incômoda presença" (Pessotti, 1984, p.24). Uma nova concepção vem concorrer com a "visão demonológica e fanática até então sustentada pelo clérigo cristão" (Palombini, 2003, p.120), e os asilos que outrora eram destinados aos hansenianos ou leprosos passam a ser utilizado para o internamento de loucos, pobres, vagabundos e pessoas com deficiência mental. Nesse ambiente asilar a imposição do trabalho forçado tinha um objetivo moral e econômico.

Em 1857, é publicado o "Tratado das Degenerescências", de Morel. A teoria da degenerescência, segundo Pessotti (1984), vem da doutrina do pecado original e substitui a condenação divina do deficiente mental pela condenação da natureza. Incorporava o mesmo fatalismo e diversas obras da época empregavam (6 Desfiliação significa para Castel (1998, p.50)) uma ruptura desse tipo em relação às redes de integração primária; um primeiro desatrelamento com respeito às regulações dadas a partir do encaixe na família, na linhagem, no sistema de interdependências fundadas sobre o pertencimento comunitário. Há risco de desfiliação quando o conjunto das relações de proximidade que um indivíduo mantém a partir de sua inscrição territorial, que é também sua inscrição familiar e social, é insuficiente para reproduzir sua existência e para assegurar sua proteção. o termo degenerescência como "significado de degradação da natureza, perda da perfeição" (Pessotti, 1984, p.135). A teoria da degenerescência veio contribuir para as teorias eugenistas e, segundo Ceccim (1997,p.34), "seu regime de verdade ganhou o senso comum e ressonância ante o doente, o deformado e toda a sorte de pessoas com deficiência'; produzindo rejeição, medo e segregação. Segundo Stainback (1999), disseminou-se a idéia de que as pessoas com deficiência eram geneticamente predispostas ao crime e eram uma ameaça à civilização, o que incrementou o processo de institucionalização na Europa nos séculos XVIII e XIX (Kassar, 1999).

A deficiência era considerada como um fator causal do crime, da pobreza e da prostituição. A pessoa com deficiência não carregava mais a marca da cólera divina: a ameaça não vinha mais de Deus, mas do próprio portador de deficiência. Mesmo com os ideais iluministas do século XVIII, de acordo com Palombini (2003), quando as grandes internações se tornam um símbolo da opressão imposta pelo antigo regime e, portanto, condenadas, loucos ou aqueles chamados de idiotas permaneceram confinados sob alegação da periculosidade. "É promulgado o retorno ao convívio social da maior parte da população dos asilos: miseráveis, desempregados, ociosos de todos os gêneros, retomam à vida da cidade" (p.121). Porém, pessoas com deficiência continuam a receber assistência nas instituições asilares, já que sua condição física ou mental era associada, com suporte na teoria da degenerescência, à periculosidade e ao crime.

A partir do século XIX a sociedade passou a defender que o melhor era criar organizações separadas onde as pessoas com deficiência pudessem receber melhor atendimento e com menos gastos. Eram instituições de assistência, tratamento e de estudos. Pessotti (1984) afirma que, nessa conjuntura, o deficiente passou a ser tutelado pela medicina, que tinha a autonomia de julgá-lo, condená-lo ou salvá-lo. O saber médico sobre a deficiência começa a se produzir e, como afirma Baptista (2003), os conhecedores dos "males do corpo” passam a ser os responsáveis diretos também pelo atendimento. Ainda nesse período não se pensava em integrar as pessoas com deficiência à sociedade ou à família. "As primeiras propostas de atendimento de uma educação chamada 'especial' surgiram associadas às características de cuidado/ afastamento e à intervenção de tipo ortopédico, no sentido de corrigir o sujeito desviante" (Baptista, 2003, p.47).

Segundo Sassaki (1999), as instituições foram se especializando, deixando de ser apenas lugares de abrigo, e se transformando em locais especializados por tipo de deficiência. No entanto, essas instituições, aparentemente apenas preocupadas com o atendimento especializado das pessoas com deficiência, foram, segundo Foucault, desde o início do século XIX, se constituindo em: instâncias de controle individual num duplo modo: o da divisão binária e da marcação (louco-não-louco, perigoso-inofensivo, normal-anormal); e o da determinação coercitiva, da repartição diferencial (quem é ele, onde deve estar, como caracterizá-lo, como reconhecê-la, como exercer sobre ele, de maneira individual, uma vigilância constante, etc.) (Foucault, 1999b, p.165). Os sujeitos com deficiência eram vistos a partir de suas deficiências: elas deveriam ser medidas e classificadas e seus corpos tornados objetos de controle, já que se opunham à ordem social. Essa dominação exercida pelas disciplinas, a partir dos séculos XVII e XVIII, se institui através de formas muito sutis por técnicas minuciosas e íntimas. Através de uma política do detalhe, de atenção às minúcias, esse corpo doente passa a ser estudado, analisado, conhecido, para ser recuperado e tratado... e, portanto, cabe à Educação Especial como um saber médico, relacionar o educar e o cuidar, com o corrigir, o tratar e o psicologizar (Lunardi, 2004, p.3). As instituições passavam a oferecer todos os tipos de serviços necessários às pessoas que as freqüentavam.

Obs. Artigo elaborado a partir da dissertação de v.B. WALBER, intitulada "As práticas de cuidado com pessoas com deficiência na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004.

*Professora, Departamento de Diaconia, Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Caixa Postal 2876, 90001-970, Porto Alegre, RS, Brasil.
**Professora Doutora, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil.
Fonte: http://www.deficienteciente.com.br/
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