Artigo do professor Romeu Kazumi Sassaki, Publicado na Revista Reação, ano XI, n. 63, jul./ago. 2008, p.10-13.
Ao tratarmos qualquer assunto pertinente às deficiências, quer seja para criar programas e serviços, quer seja para elaborar leis ou políticas públicas, é imprescindível levarmos em conta a opinião das organizações de pessoas com deficiência. A exigência no sentido de que essas organizações sejam consultadas foi reconhecida e registrada em inúmeros documentos mundiais desde a década de 70 até os dias de hoje.
O Brasil participou da elaboração e/ou aprovação de vários desses documentos, dos quais foram extraídos e abaixo copiados os trechos que afirmam esta exigência. Exigência que, aos poucos, passou de uma simples reivindicação para o status de um dos direitos mais importantes do século 21.
No início – digamos 50 ou 60 anos atrás – algumas pessoas com deficiência manifestavam o desejo de serem consultadas (para fins de reabilitação, educação, qualificação profissional, emprego, equipamentos especiais etc.), mas dificilmente eram levadas a sério. Freqüentemente nas décadas de 50 e 60 e com menos freqüência nas décadas de 70 e 80, era uma prática comum da maioria dos especialistas, órgãos públicos e iniciativas privadas a produção de bens, serviços, leis e programas para beneficiar pessoas com deficiência, mas sem consultá-las primeiro. A teoria vigente era de que as boas intenções bastavam para justificar essa prática. Reinava, por assim dizer, o raciocínio “Para que consultá-las, se estamos oferecendo coisas que sabemos serem boas para elas?”
Como se pode confirmar examinando os trechos a seguir, a exigência para que os bem-intencionados consultem, primeiro, os próprios beneficiários foi se transformando lentamente em um direito das pessoas com deficiência. E este direito é tão poderoso que atravessou seis décadas. Inicialmente, ele sobreviveu dentro do contexto da integração, cuja característica principal se baseava no princípio de que “as pessoas precisavam ser preparadas, modificadas, para poderem fazer parte da sociedade”. No final dos anos 80 e adentrando a década seguinte, as pessoas com deficiência mostraram à sociedade que o direito de serem consultadas era compatível com o contexto da inclusão e que, portanto, não precisavam lutar contra o novo paradigma. No século 21, cabe à sociedade ser preparada, modificada, para poder acolher a diversidade e as diferenças de todas as pessoas, com ou sem deficiência.
Anos 70 e 80 (Integração)
Nestas duas décadas, o paradigma da integração foi a palavra de ordem: modificar as pessoas com deficiência para que se tornassem encaixáveis nos poucos espaços da sociedade acessíveis a elas. A sociedade foi, em diversos momentos, lembrada de que deveria consultar as pessoas com deficiência para atingir o objetivo de modificá-las. Foi em 1986 que surgiu pela primeira vez na história o lema “Nada Sobre Nós, Sem Nós”. Este foi o lema com o qual surgiu a ONG Pessoas com Deficiência da África do Sul, para protestar contra o regime do apartheid, implantado pela minoria branca racista que governava aquele país (ver “Nada sobre nós, sem nós”, Revista Reação, nº 57 e nº 58, 2007). Em outras palavras, o lema traduz exatamente a exigência da consulta às organizações de pessoas com deficiência antes de se produzir qualquer coisa em benefício delas.
“As organizações de pessoas deficientes podem ser beneficamente consultadas em todos os assuntos referentes aos direitos das pessoas deficientes.” (Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, Organização das Nações Unidas, 9/12/75)
“As pessoas surdocegas têm o direito de ser consultadas sobre todos os assuntos que lhes interessam diretamente.” (Declaração dos Direitos das Pessoas Surdocegas, Conferência Mundial Helen Keller sobre Serviços para Jovens e Adultos Surdocegos, 16/9/77, e Conselho Econômico e Social da ONU, 9/5/79)
“É responsabilidade dos Governos a implementação da presente Declaração; para este fim, eles deverão adotar todas as possíveis medidas legislativas, técnicas e fiscais e assegurar que pessoas com deficiência, suas associações e organizações não-governamentais especializadas participem na elaboração de tais medidas.” (Declaração de Sundberg, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 1981)
“As pessoas com deficiência e, particularmente, suas organizações precisam ser consultadas em todos os projetos de desenvolvimento planejados para pessoas com deficiência, em especial em relação aos fundos advindos de países desenvolvidos. As pessoas com deficiência e representantes de suas organizações precisam estar diretamente envolvidas em todas as estruturas criadas para desenvolver projetos.” (Plano de Ação Afirmativa de Viena, Organização das Nações Unidas, 1981)
“Os Países-Membros deverão estabelecer contatos diretos com organizações de pessoas com deficiência e prover canais para elas influenciarem as políticas e decisões governamentais em todas as áreas que lhes digam respeito. Para esse propósito, os Países-Membros deverão dar o necessário apoio financeiro às organizações de pessoas com deficiência.” (Programa Mundial de Ação relativo a Pessoas com Deficiência, Organização das Nações Unidas, 1983)
“Profissionais que trabalham em programas de atendimento a pessoas com deficiência deverão ser treinados para entender as razões para (e a importância de) buscar, estimular e ajudar a participação plena das pessoas com deficiência e suas famílias nas decisões referentes a cuidados, tratamento, reabilitação e subseqüentes arranjos de moradia e emprego.” (Programa Mundial de Ação relativo a Pessoas com Deficiência, Organização das Nações Unidas, 1983)
“Todo esforço deverá ser feito para estimular a formação de organizações de pessoas com deficiência nos níveis local, nacional, regional e internacional. Sua habilidade singular, resultado de sua experiência, pode dar contribuições significativas ao planejamento de programas e serviços para pessoas com deficiência. Seu impacto sobre as atitudes do público justifica serem consultadas. (...) As próprias pessoas com deficiência deverão ter uma influência substancial para determinar a eficácia dos programas, serviços e políticas, planejados para o benefício delas.” (Programa Mundial de Ação relativo a Pessoas com Deficiência, Organização das Nações Unidas, 1983)
“As organizações representativas de e para pessoas com deficiência devem ser consultadas sobre a aplicação da política nacional de reabilitação profissional e emprego de pessoas com deficiência e sobre as medidas que devem ser adotadas para promover a cooperação e coordenação dos organismos públicos e particulares que participam nas atividades de reabilitação profissional” (Convenção sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas com Deficiência, Organização Internacional do Trabalho, nº 159, 1983)
“As funções do órgão nacional para assuntos de deficiência deverão incluir: (...) Apoiar a criação de organizações de pessoas com deficiência e adotar medidas para assegurar que tais organizações tenham acesso aos órgãos decisórios nos níveis nacional, estadual e local.” (Diretrizes para Ações Prioritárias em Nível Nacional, Organização das Nações Unidas, 1984)
“Os planos nacionais de educação especial deverão incluir o desenvolvimento e fortalecimento de relevantes organizações voluntárias, inclusive organizações de pessoas com deficiência e associações de pais. Estas organizações deverão ser consultadas e deverão participar plenamente em todas as etapas do desenvolvimento e planejamento de provisões e serviços para pessoas com deficiência.” (Consultoria sobre Educação Especial, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 1988)
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