Rede SACI
Belo Horizonte - MG, 10/06/2011
Adriana Lage comenta sobre a exclusão das pessoas com deficiência ao longo da história da humanidade
Adriana Lage
Se compararmos a qualidade de vida das pessoas com deficiência, hoje em dia, com as pessoas com deficiência dos anos anteriores, veremos que a situação está muito mais favorável. Tivemos conquistas relevantes, dentre elas o direito ao trabalho, à educação inclusiva, uma das legislações mais abrangentes – mesmo que, infelizmente, na prática, os direitos nem sempre sejam respeitados -, um grande aumento da participação das pessoas com deficiência na política, nos esportes e na cultura. Atualmente, não há limites para nós! Estamos presentes em quase todas as áreas: já temos modelo down, magistrado cego, cirurgião cadeirante, atores e cantores com deficiência, etc. Temas como acessibilidade, diversidade, maternidade e vulnerabilidade sexual ganharam visibilidade. A pessoa com deficiência, aos poucos, foi ganhando voz ativa e tomando as rédeas de sua vida.
O reconhecimento das pessoas com deficiência como cidadãos é bem recente. É fruto do movimento da inclusão. Ao longo da história, sempre fomos excluídos e, em várias épocas, éramos totalmente invisíveis!
Sempre existiram pessoas com deficiência. Independente de sua causa (uma doença ou adquirida com o passar dos anos), a humanidade sempre esteve cheia de pessoas com deficiência, fossem eles anônimos ou não. Por exemplo, como não se encantar com as cores de Frida Kahlo (sou fascinada com sua história e talento; adoro mulheres poderosas!), as obras maravilhosas de Aleijadinho, Van Gogh, Beethoven, Stephen Hawking, Hellen Keller... São inúmeros os exemplos de superação. Mesmo com as dificuldades impostas pela deficiência, a falta de acessibilidade e o preconceito, lutaram e se fizeram visíveis perante a sociedade. Na minha listinha de ídolos com deficiência, destaco ainda Clodoaldo Silva, Edênia Garcia, Lars Grael, Mara Gabrilli e uma série de anônimos que me servem de exemplo e incentivo para ir sempre além dos meus limites.
Vamos voltar um pouquinho no túnel do tempo e relembrarmos esses tempos de agruras e invisibilidade.
Na mitologia grega, temos Hefesto, filho de Zeus e Hera, como representante. Ele era manco, o que lhe dava uma aparência grotesca aos olhos dos antigos gregos. Alguns relatos contam que se tornou manco após ter sido arremessado dos céus por Zeus. Outros autores dizem que foi arremessado por sua mãe, decepcionada por ter um filho com deficiência física. Como diria minha vó, Hefesto sempre foi da pá virada! Sua história é cheia de vinganças e muitas mulheres. Ele foi responsável pela fabricação de grande parte dos equipamentos utilizados pelos deuses. Era um exímio ferreiro. Dentre outras coisas, criou o elmo alado, as sandálias de Hermes, a cinta de Afrodite e o arco e flecha de Eros. Também deu ao cego Órion seu aprendiz, Cedálion, que se tornou seu guia. Outra criação importante teria sido Pandora.
Na Antiguidade, acreditava-se que as pessoas com deficiência eram amaldiçoadas. A deficiência era relacionada à bruxaria. Resultado: as pessoas com deficiência eram eliminadas sem dó nem piedade.
Com a ascensão do Cristianismo, na Idade Média, as pessoas com deficiência deixaram de ser eliminadas, uma vez que a Igreja Católica considerava todos os seres como criatura de Deus. Ao invés de serem mortas, passaram a ser abandonadas e ignoradas à própria sorte. Tiveram que contar com a caridade e boa vontade de outras pessoas para sobreviver. Vem dessa época a mendicância das pessoas com deficiência. Ainda nessa época, algumas pessoas com deficiência passaram a ser ‘aproveitados’ com fins de entretenimento. Muitos se tornaram bobos da corte. Sempre brinco com meus amigos, quando faço muitas palhaçadas e me chamam de retardada, que estou apenas resgatando a história dos meus ‘companheiros’. Bobo da corte foi uma de nossas primeiras profissões! Brincadeiras à parte, as pessoas com deficiência também eram aproveitados em circos, explorados como aberrações da natureza. Em outros casos, eram explorados sexualmente. Imagino o quanto sofreram as pessoas com deficiência nesses tempos difíceis e repugnantes.
No século XII, a sociedade começou a se incomodar com essa situação. Surgiram, então, as primeiras instituições para abrigar pessoas com deficiência (sobretudo pessoas com deficiência intelectual) e as primeiras legislações sobre os cuidados necessários para a sobrevivência. Só que essas instituições, que ficavam bem longe dos centros urbanos, se transformaram em locais de confinamento. Conventos, asilos e hospitais psiquiátricos, ao invés de se transformarem em locais de tratamento para as pessoas com deficiência, se tornaram verdadeiras prisões. Vale lembrar que, ainda hoje, temos algumas instituições que funcionam dessa forma!
Esse período, conhecido como Paradigma da Institucionalização, permaneceu por mais de 500 anos. Nem mesmo a evolução da medicina, durante a Revolução Burguesa, a partir do século XVI, conseguiu mudar esse pensamento. Nessa época, a tese da organicidade reconheceu que as deficiências eram frutos de fatores naturais, acabando com a idéia de que fossem associadas a fatores espirituais. Tivemos avanços nas formas de tratamento, etiologias e funcionamento das deficiências.
A Institucionalização foi o primeiro padrão formal a caracterizar a interação da sociedade com as pessoas com deficiência. Pena que, no final das contas, as instituições serviam para a segregação. A pessoa com deficiência era levada para longe da família e ficava ‘escondido’ do restante da sociedade. Minha mãe sempre me conta que existia, em BH, na época em que ela era criança, uma casa em que moravam apenas meninas com síndrome de down e paralisia cerebral. Todas eram filhas de famílias ricas. Por vergonha e preconceito da sociedade, as crianças ficavam esquecidas por lá até a morte. Minhas avós sempre contam casos de pessoas com deficiência que viviam trancadas em casa. Tive uma tia avó com poliomielite. Ela andava normalmente, mas tinha uma das pernas finas. Como, na época de sua mocidade, mulheres só usavam saia, ela acabou vivendo apenas dentro de casa. Tinha vergonha das outras pessoas. Nem sol ela tomava. Parecia uma albina! Ainda hoje temos escolas especializadas. Esse assunto é bem polêmico e deixarei para abordá-lo em outro texto.
A situação só começou a melhorar, em meados do século XX, por volta da década de 60. O Paradigma da Institucionalização começou a ser questionado e criticado, sobretudo pelo alto custo que era manter as pessoas com deficiência segregadas e na improdutividade. Várias áreas da sociedade fizeram pressão para que a situação se modificasse. A década de 60 tornou-se marcante na relação da sociedade com a pessoa com deficiência. Surgiram os conceitos de normalização e desinstitucionalização.
O movimento da desinstitucionalização iniciou-se, no ocidente, pela falha do Paradigma da Institucionalização na integração da pessoa com deficiência à sociedade, na restauração do funcionamento normal do indivíduo, nas relações interpessoais, nos estudos e no trabalho. “A ação era baseada na ideologia da normalização e defendia a necessidade de introduzir o cidadão com deficiência na sociedade, procurando ajudá-lo a adquirir as condições e os padrões de vida no nível mais próximo do considerado normal.”
Nessa época, os esportes adaptados ganharam visibilidade. Vários soldados americanos voltaram pra casa multilados e descobriram no esporte uma nova ocupação e sentido para a vida.
Criou-se o conceito de integração, no qual a pessoa com deficiência deveria ser modificada para se adequar à sociedade. Para um bom convívio social, as pessoas com deficiência deveriam se assemelhar, o máximo possível, às pessoas ditas ‘normais’ da sociedade. Esse conceito não deu certo, já que era muito relativo e subjetivo.
Finalmente, chegamos ao conceito da inclusão. Percebeu-se que esse processo de integração das pessoas à sociedade deveria ser bi-direcional. A sociedade também deveria ser modificada de forma a criar condições iguais para todos os cidadãos exercerem seus direitos e deveres.
“A sociedade inclusiva tem como principal objetivo oferecer oportunidades iguais para que cada pessoa seja autônoma e auto-suficiente. Portanto, esta sociedade é democrática e reconhece todos os seres humanos como livres e iguais e com direito a exercer sua cidadania.“ Só com a sociedade inclusiva deixamos pra trás o pensamento arcaico de que as pessoas com deficiência tinham uma vida com possibilidades reduzidas, viviam sem perspectivas e eram uns pobres coitados dignos de dó.
Se pararmos pra pensar, nosso reconhecimento com cidadãos é muito recente! Mesmo com tantas mudanças, ainda escuto, com freqüência, frases como:
- “Coitada! Você trabalha o dia todo! Se fosse você, iria me aposentar e ficar à toa”;
- “O que ela vai querer comer?” – várias pessoas ainda se referem ao acompanhante ao invés de tratar diretamente com a pessoa com deficiência;
- “Nossa! Você tem dinheiro? Pensei que seu pai pagava suas contas!”;
- “Se fosse minha filha, não teria saído de casa pra não se machucar no mundo”;
- “Quem é o doido que colocou um anel de compromisso na sua mão?”;
- “Quem nada é o Cielo! Não tem como nadar sem mexer as pernas e ter força nos braços.”;
- “Olha, você é muito inteligente, bonita e gente boa, mas melhor sermos apenas amigos ou irmos tirando umas casquinhas um do outro, sem chance de compromisso!”;
- “Que pena! Não estamos preparados para recebê-la. Mas as reformas já estão previstas no projeto” – entra ano, sai ano, as coisas ficam no mesmo lugar! As reformas nunca saem do papel!
- “Já pensou quantas travessuras podemos fazer? Vai voar pedaço de cadeira pra todo lado!”.
Esses são apenas alguns exemplos das situações que enfrento diariamente. Meus amigos também passam por situações semelhantes. Sem sombra de dúvida, a situação já melhorou muito. Mas ainda há muito a ser feito. Por exemplo, no centro de BH, temos vários cadeirantes vendendo chocolate ou consertando guarda-chuva. Uma amiga, que trabalha na Coordenadoria dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da Prefeitura de Belo Horizonte, me disse que grande parte das pessoas com deficiência da cidade ‘está pendurada nos morros’ e que muitos preferem receber a aposentadoria que se arriscar em um emprego. Muitos acabam dando o dinheiro da aposentadoria para os familiares e aumentam sua renda na mendicância. Eu, particularmente, não dou dinheiro de jeito nenhum. Meu pai sempre fica sensibilizado quando vê alguma pessoas com deficiência pedindo esmola e não resisti; acaba dando algum dinheiro. Pouco a pouco, estou mudando essa mentalidade dele. Afinal, esmola não resgata a cidadania de ninguém e também não resolve o problema. Precisamos modificar/eliminar, sobretudo, as barreiras atitudinais. É muito mais fácil arrumar um saco de cimento e construir uma rampa, do que modificar pensamentos arcaicos e posturas preconceituosas sedimentadas ao longo de anos de exclusão e invisibilidade!
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