Robert Martin
Questões de vida
Por que a minha vida tem sido tão diferente, comparada com a de vocês? O que faz de nós, pessoas com deficiência intelectual, tão diferentes? Por que somos, com frequência, consideradas pessoas de pouco valor? Por que temos de morar com outros como nós, até compartilhando o mesmo quarto com um estranho que nem ao menos é nosso amigo?
Por que não vamos à mesma escola com nossos irmãos e irmãs? Por que temos de frequentar uma escola separada, já que temos suficiente sorte de ir à escola? Por que somos os últimos a conseguir um emprego real e exercer um trabalho real, quando somos capazes de trabalhar? Por que estamos entre os mais pobres dos pobres?
Por que só alguns de nós somos casados ou moramos com um(a) companheiro(a)? Por que nossas famílias são tão maltratadas por sermos seus filhos? Por que esta diferença conosco, mesmo quando moramos na mesma rua? Por que somos vistos como seres humanos inferiores e a nossa existência é questionada por algumas pessoas?
Por que os governos e as Nações Unidas não nos incluem quando estão discutindo leis ou declarações que nos afetam?
Muitos parecem ainda não entender o motivo pelo qual estas questões são tão importantes para nós. Precisei encarar estas questões à medida que me tornava uma pessoa real. Vi o dano causado a pessoas como eu pelo fato de viverem em instituições. Não só nas instituições, mas também na comunidade. Vejo muitos de meus amigos ainda lutando para serem eles mesmos, para serem aceitos pelo que eles são.
Falarei para vocês sobre o que o empoderamento e a plena participação significam para mim. O que elas significam para nós que temos uma deficiência intelectual.
Existem 60 milhões de pessoas como eu, com deficiência intelectual, no mundo. Aceito a minha deficiência e tudo o que ela significa para mim. Fico bravo quando pessoas me dizem: "você não tem deficiência". Elas nada sabem sobre a minha vida e a luta que houve para mim e para meus amigos.
Minha infância
Em primeiro lugar, vou dizer algo da minha infância. Minha história não é especial. Não fui tratado tão diferentemente de muitos dos meus amigos. A oportunidade de viajar pelo mundo me mostrou que nossas histórias são bem parecidas.
Fui internado em uma instituição quando era bem pequeno; ainda era apenas um bebê. Na instituição, havia várias centenas de pessoas como eu. Fomos trancados longe do resto da comunidade. Eu podia visitar minha família apenas alguns dias por ano. Permitiam que eu fosse para casa por um curto tempo, mas sempre me levavam de volta à instituição.
Eu gritava por minha família, mas ninguém vinha. Gritava por minha irmã, mas ela também estava internada numa instituição. Aprendi a parar de gritar porque nada iria mudar. Lembro-me de que, quando tinha uns 7 anos de idade, fui forçado a ficar com uma família. Lá fui tratado como um escravo.
Eu tinha de alimentar os porcos. Mal podia levantar o balde. Afinal de contas, eu tinha só 7 anos de idade. Fui obrigado a trabalhar como um adulto e era punido quando não terminava todo o meu trabalho. Quando tentava fugir, era levado de volta por um funcionário do bem-estar. Ele me dizia que estavam tentando me proteger. Proteger-me do quê?
Fui removido de uma instituição para outra. Quando tinha uns 14 anos de idade, internaram-me em um hospital psiquiátrico. Lá estava lotado de adultos. Eu era tão pequeno que eles não tinham roupas que me servissem. Eu era um pequeno garoto dentro de uma roupa de adulto. Lembro que, naquele momento, pensei em dar um fim à minha vida. Não via razão alguma para continuar vivo.
Fui levado a uma outra instituição, que era uma escola para crianças problemáticas. Lá conheci o esporte. Pela primeira vez na minha vida, encontrei algo em que eu era bom. Finalmente, eu era algo mais que uma deficiência intelectual. Perceberam que eu tinha algo a oferecer.
Foi nesta época que fui vítima de abuso sexual, cometido por um membro da equipe, mas nada foi feito sobre isto. Pudera eu dizer que só a minha infância foi injusta, que só eu fui um infeliz, que só eu fui um azarado. Mas a verdade é que aconteceu quase a mesma coisa para muitos dos meus amigos.
Pessoas com deficiência intelectual
Tive a oportunidade de conhecer muitas pessoas com deficiência intelectual de outras partes do mundo. Nem todas elas viveram em instituições. Elas não passaram pela experiência de viver no inferno de um hospital psiquiátrico. Mas suas histórias são parecidas com a minha. Por muito tempo, pensei no motivo por que as coisas eram assim.
Tive um amigo sueco chamado Ake Johansson, que infelizmente morreu uns dois anos atrás. Alguns de vocês devem ter conhecido Ake. E saber que ele passou maior parte da vida em instituições. Ake me disse: "Viver numa instituição não é um modo correto de vida".
É negado o nosso direito de crescer em uma família com nossos irmãos e irmãs. São negados os nossos direitos como cidadãos. São negados os nossos direitos como seres humanos. É negado o nosso direito a uma educação adequada. Se temos uma deficiência intelectual, com frequência seremos, lamentavelmente, tratados desta forma.
Muitos de nós, que já vivemos em instituições residenciais, tivemos uma experiência semelhante. Mesmo se tivéssemos vivido com a nossa família, podemos ter sido maltratados ou vítimas de abuso sexual. Assim, muitos de nós não pudemos usufruir uma vida normal na comunidade.
Não temos vivido em um mundo normal. Com frequência, fomos agrupados por causa da nossa deficiência. Perdemos nossos direitos como cidadãos. Outros se apoderaram do nosso direito de tomar decisões pessoais. Com frequência, fomos esterilizados e nos disseram que o nosso apêndice foi retirado. Depois na idade adulta, descobrimos que o nosso direito de ter filhos havia sido eliminado. Se tivéssemos sorte, podíamos frequentar uma escola especial segregada. Caso contrário, não podíamos frequentar escola nenhuma.
Nossas famílias não estavam em situação melhor. Com frequência, elas viram seus amigos fugirem. Mesmo seus parentes mais próximos paravam de visitá-las. Elas se tornaram famílias com deficiência. Quando pude ver o que havia acontecido com a minha família, comecei a entender como a minha deficiência havia afetado a família inteira. Não afetou apenas minha mãe, meu pai e minha irmã, havia afetado também os demais familiares.
Desempoderados
Em consequência, nunca aprendemos a tomar nossas decisões. Fomos vistos como incapazes de tomar decisões responsáveis. Outras pessoas tomavam nosso poder pessoal e nos controlavam totalmente. Fomos desempoderados; não participávamos na vida pessoal ou comunitária.
Fomos excluídos da nossa comunidade. Porém, com frequência, é a comunidade - as pessoas que podemos chamar de amigas - que nos ajuda a tomar decisões.
Segregação e discriminação
Quero agora falar sobre um outro fator importante que tem tornado difícil a vida para nós, pessoas com deficiência intelectual. Trata-se da segregação, que nos mantém afastados. Cresci em uma comunidade que segregava pessoas consideradas diferentes. Fui segregado porque tinha uma deficiência. As crianças da vizinhança não tinham permissão para brincar comigo. Talvez pensassem que seriam contaminadas pela minha deficiência. Não fui à escola com os amigos. Aos poucos, perdi meus amigos. Não praticava esportes na escola ou nos fins de semana. Não podia ir a festas de aniversário, visitar o zoológico, alimentar os patos ou ir ao jogo de futebol com meu pai.
Não ia a reuniões de família, como aniversários, casamentos. Não visitava meus parentes. Não sabia quem eram meus parentes. Mais tarde, aprendi que aconteceu quase a mesma coisa aos meus pais. Eles não tinham o apoio da família e dos amigos. Ninguém estava lá para ajudá-los a entender a minha deficiência. As famílias e os amigos deles desapareceram. Eles se tornaram uma família deficiente por minha causa. Levou um bom tempo para eu entender aquilo.
Aprendi que a discriminação e a segregação se tornam uma parte aceita da comunidade. Nossos pais começam a aceitar que isso está correto. Mesmo nós com deficiência começamos a aceitar que isso está correto. As pessoas pensam que todos estão em seus lugares legítimos e a comunidade começa a parabenizar a si mesma pela forma como ela cuida das pessoas menos favorecidas. Ela diz: "Olhem como essas pessoas têm um lugar maravilhoso para viver", "Olhem a maravilhosa equipe técnica que cuida delas", "Olhem quanto dinheiro gastamos para cuidar dessas pessoas infelizes".
Eu faria uma pergunta simples: Se é tão maravilhoso assim, por que ninguém quer crescer como eu cresci? Estar segregado da comunidade nos impede de participar em esportes. Impede que façamos coisas que os outros tomam como naturais. Mas, acima de tudo, impede que sejamos as pessoas que temos o direito de ser.
O nosso esporte nacional na Nova Zelândia é o rúgbi e o nosso time nacional é o All Blacks. Quando vivia na instituição, eu nunca soube quem eram os All Blacks. Nunca os vi na televisão nem os ouvi pelo rádio. Na instituição, ganhei uma bola de rúgbi, que aprendi a chutar para o telhado. Isto significava que alguém precisava trazer a bola para baixo. Alguém tinha de tomar conhecimento de mim. Pelo menos consegui uma coisa boa: aprendi a chutar uma bola.
Se vamos ter plena participação, esta precisa começar na comunidade onde nascemos. Trata-se do lugar que escolhemos para nele viver. Manter as pessoas afastadas de sua comunidade nunca pode ser justificado. É preciso parar de segregar pessoas por terem uma deficiência.
Quem tomou meu poder
Tenho pensado com frequência sobre quem tomou meu poder. Por que eu não era como os outros? O que era tão diferente em minha vida? Como me tornei um desempoderado? O que aconteceu?
Acredito que foram exatamente as pessoas que mais alegavam importarem-se comigo quem tomou muito do meu poder. Eram profissionais, professores e funcionários que escolheram controlar minha vida. Os médicos controlavam completamente a minha vida na instituição. Eles eram mais poderosos que deus. Meus pais nada podiam dizer. Os médicos sabiam melhor.
Enquanto alguns eram gentis, outros eram maldosos e dificultavam nossa vida. Eles falavam sobre nós como se não fossemos pessoas, como se fossemos invisíveis ou ausentes. Alguns se importavam conosco, mas para muitos deles isso era apenas um emprego.
Lembro-me de que fiquei doente na instituição e ninguém percebeu isso por vários dias. Simplesmente fiquei deitado no assoalho. Também me deram um remédio errado e quase morri.
Estou agora envolvido com treinamento de funcionários e, faz pouco tempo, ouvi um deles falando para conduzirem as "cadeiras de rodas" para o almoço. Eles esqueceram totalmente que havia pessoas nas cadeiras de rodas. Talvez eles realmente pensassem que as cadeiras de rodas é que almoçariam. Que esquisito!
Decidindo por si mesmos
Quando o nosso poder é arrancado da gente, os outros tomam conta da nossa vida. Não conseguimos tomar nenhuma decisão que seja importante para nós. Perdemos nossa confiança. A gente se acostuma a que outros decidam tudo por nós.
Isto é uma verdade até para pequenas coisas em nossa vida. Por exemplo, que roupas vestirei? O que eu quero junto com o chá? Isto pode começar quando ainda somos muito pequenos e nunca nos dão a oportunidade de aprender a tomar decisões. Isto está errado. Parte do crescimento é aprender a tomar decisões por si mesmo.
Quando comecei a atuar como autodefensor, tive de aprender muitas palavras. Precisei aprender o que as palavras "empoderamento" e "plena participação" significavam. Não foi fácil, porque eram muitas palavras que eu não havia ouvido antes. (continua amanhã)
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