Ally e Ryan

Ally e Ryan

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Sobre a participação das pessoas com deficiência nas tomadas de decisão

Patricia Almeida.

Mais uma vez a participação de pessoas com deficiência intelectual em importantes eventos em que elas próprias são o assunto principal é posta em cheque. Parece que não adiantam tratados internacionais, leis nem campanhas de conscientização para que mesmo aqueles que estão dentro do movimento das pessoas com deficiência, entendam que esta participação não é uma opção. “Nada sobre nós sem nós”, não é apenas um lema, é um direito constitucional.

Com o intuito de ajudar a convencer esta parcela resistente às mudanças, que inclusive não vêm de hoje - na verdade começaram a acontecer em 1978, no Congresso de Viena e portanto há 33 anos (!),.traduzi trechos da biografia do ativista Peter Mittler, da Inclusion International, que descrevem conferências mundiais sobre deficiência intelectual e contam a história dos auto-defensores.

Inclusion International - Uma história pessoal, de Peter Mittler.

“Viena - 1978.

O Congresso de Viena sobre deficiência mental de 1978 foi memorável por ter sido a primeira ocasião em que grupos de pessoas com deficiência intelectual participaram.

(…)Houve algumas discussões sobre que “acomodações especiais” teriam de ser feitas para eles, mas logo foi decidido apenas deixá-los vir como participantes comuns, juntamente com os seus acompanhantes, e misturarem-se com todos os outros em sessões, eventos sociais e passeios.

Nairobi - 1982.

Uns 300 auto-defensores chegaram, junto com acompanhantes e alguns com seus pais.

A sessão plenária foi uma experiência inesquecível. Cada membro do painel veio de um país diferente e nem todos falavam em Inglês. Ake Johansen, o mais antigo membro do painel, passou décadas em uma instituição de longa permanência sueca e mais tarde publicou um livro sobre suas experiências. Alguns tiveram algum apoio, mas a maioria falou sem notas e se manteve dentro do tempo estipulado. Todos eles falaram sobre os seus direitos - o direito de ir à escola e trabalhar na comunidade, o direito de escolher como e onde viver, o direito de escolher os amigos.

No final, Ake Johansen nos presenteou com uma lista de recomendações sobre como fazer a próxima conferência mais acessível - os palestrantes não deveriam falar por tanto tempo, usar frases curtas, lembrar-se que nem todo mundo sabia tantas palavras como eles. Todos os conselhos admiráveis mas nem sempre são atendidos, como ele mesmo se queixou muitos anos depois.

Poucos de nós havia visto um evento como esse e o público oscilava entre silêncio atordoado e aplausos histéricos. Mas, mais estava por vir: perguntas e respostas. Todos nós tínhamos medos sobre como essa parte iria se desenrolar. Será que as perguntas serão muito complicadas, irrelevantes, até mesmo hostis? Será que os debatedores entenderão as perguntas e serão capazes de responder? Pelo que me lembro, embora houvesse obstáculos e dificuldades, as sessões de perguntas e respostas excederam todas as nossas expectativas.

Hanburgo - 1985.

Hamburgo marcou uma virada na histórica não só da Liga (Liga de Sociedades de Pessoas com Deficiência Mental, ILSMH, que deu origem à Inclusion International), mas do movimento de auto-defensores, porque o que aconteceu não foi planejado e pegou todos de surpresa. Foi na verdade uma manifestação de todos os auto-defensores, protestando contra a sua exclusão da conferência.

O evento de Hamburgo era uma conferência regional europeia, muito bem organizada e planejada pela Lebenshilfe da Alemanha, liderada por Tom Mutters, um dos três fundadores da Liga. Após o encontro de Nairobi, houve uma forte mobilização para a participação do maior número de auto-defensores possível.

Mais de 300 auto-representantes vieram de toda a região. Os organizadores tinham feito arranjos para que visitassem uma variedade de serviços e locais de interesse e organizado muitas atividades de lazer, bem como oportunidades de discussão entre si. Mais uma vez, uma sessão final foi planejada em que alguns deles fariam uma breve apresentação e recomendações sobre temas específicos, seguido por uma rodada de perguntas e resposta.

Havia uma atmosfera de expectativa no auditório lotado e parecia que os membros da mesa e a moderadora da sessão estavam prestes a subir ao palco. Ao invés disso, assistimos a uma procissão interminável de auto-defensores deixando os seus lugares reservados nas filas da frente e andando de maneira calma e ordenada para a palco. Quando estavam todos reunidos, eles cuidadosamente desfraldaram um banner enorme, da largura do palco, onde se lia:

“Por que fomos excluídos desta conferência?”

Ninguém falou uma palavra. Os auto defensores mantiveram-se firmes, de frente para o público, mas com uma atitude amigável. Houve um longo silêncio, atordoador. Ninguém sabia o que fazer. A moderadora e os membros da mesa não estavam à vista.

O silêncio foi finalmente quebrado pelas palmas e gritos de pessoas da platéia, muitas estavam de pé, algumas estavam chorando. Outros permaneceram impassíveis. Os organizadores alemães estavam em estado de choque. Nem eles nem ninguém tinha ideia do que iria acontecer. Os auto-defensores sorriram e acenaram de volta, mas ficaram onde estavam.

Eventualmente, eles voltaram para seus lugares, e a sessão que estava programada começou. Depois do que aconteceu, poderia ter sido um anti-clímax, mas não foi. A mesa explicou que os auto-defensores estavam felizes por estar em Hamburgo, mas eles pensavam que iriam assistir a uma conferência. Em vez disso, visitaram vários centros de convivência, residências terapêuticas e fizeram atividades de lazer. Eles gostaram de estar uns com os outros, fizeram algumas amizades e tinham aprendido muito, apesar dos problemas de linguagem. Mas não tinham participado da conferência - até agora.

A sessão terminou e, como presidente, coube-me encerrar a conferência. Em vez das palavras convencionais, eu disse que tínhamos acabado de presenciar um evento histórico - não apenas para a Liga, mas para pessoas com deficiência intelectual em todo o mundo. Pela primeira vez, que eu soubesse, eles não estavam apenas falando por si próprios, mas estavam fazendo isso sem a mediação de seus pais, de profissionais, nem dos membros da Liga. Eles também se mostraram solidários uns com os outros, o que lhes daria força para voltar aos seus países e continuar a lutar por seus direitos e por aquilo que em acreditavam. Disse que todos nós deveríamos dar as mãos a eles até onde eles quisessem o nosso apoio, e deixá-los prosseguirem.

A sessão terminou, mas pequenos grupos permaneceram em cada canto do auditório em animada discussão. Eu dei uma volta pelo auditório e pude ouvir divergências profundas e perturbadoras entre os grupos e dentro deles. Familiares, amigos e colegas de profissão que pensavam que conheciam as opiniões uns dos outros encontravam-se em extremos opostos.

Algumas pessoas elogiaram o que eu tinha dito no encerramento, mas muitas não gostaram. Eu não posso estimar quantas pessoas simpatizaram com os manifestantes, mas entre aqueles que levantaram dúvidas e demonstraram até mesmo hostilidade, eu pude identificar algumas reações bastante perturbadoras:

• “Eles não estavam falando por si próprios";

• Eles foram manipulados;

• Eles não eram pessoas com deficiência intelectual, eram?

• Quem são eles para falar por nossos filhos?

• Eles deveriam estar agradecidos a nós por termos deixado-os vir.

Assembléia das Nações Unidas.

Para mim, o movimento de auto-defensores atingiu a maioridade quando Goode Barb dirigiu uma sessão plenária da Assembléia Geral da ONU para marcar o fim da Década das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas em 1992. Ela disse o seguinte:

“Falo em nome de pessoas com deficiência mental. Somos pessoas primeiro lugar e só em segundo lugar nós temos deficiência mental.

Queremos avançar nos nossos direitos e queremos que outras pessoas saibam que estamos aqui. Queremos explicar aos nossos companheiros seres humanos que podemos viver e trabalhar em nossas comunidades. Queremos mostrar que temos direitos e responsabilidades.

Nossa voz pode ser uma novidade para muitos de vocês, mas é melhor se acostumar a ouvi-la. Muitos de nós ainda temos que aprender a falar. Muitos de vocês ainda tem que aprender a ouvir e nos entender.

Precisamos de pessoas que tenham fé em nós. Você tem que entender que nós, como você, não queremos viver em instituições. Queremos viver e trabalhar em nossas comunidades. Contamos com seu apoio às pessoas com deficiência mental e suas famílias. Contamos com seu apoio a ILSMH e suas associações-membros.

Acima de tudo, exigimos que vocês nos dêem o direito de fazer escolhas e tomar decisões sobre nossas próprias vidas “.

O protocolo da ONU não permite aplausos, mas as palmas - e as lágrimas nos olhos - mostraram que esta não era uma ocasião comum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário