Anahí Guedes de Mello destaca a importância de se educar os surdos na produção de discursos espontâneos
Anahí Guedes de Mello
"As palavras culpam sempre as circunstâncias. Só triunfa no mundo quem se levanta e procura as circunstâncias e as cria, se não as encontram".
(George Bernard Shaw)
O que eu penso sobre o oralismo?
Com freqüência eu leio comentários alheios acerca da minha condição de surda oralizada como se eu fosse um caso atípico, isolado e que, por isso mesmo, não poderia ser levado em consideração.
Por outro lado, sobre a classificação da minha surdez em pré ou pós-lingual, tampouco acredito que mesmo o fato de eu apresentar, paradoxalmente, algumas características da surdez pós-lingual - já era surda antes dos 3 anos de idade, portanto, pelas "regras" da lingüística, eu seria na verdade surda peri-lingual, o que está mais próximo de um pré- lingual - seja um fator único para justificar o nível de linguagem que tenho. Conheço muitos surdos pós-linguais que não têm um nível de pensamento e linguagem de forma que os permitam se expressar fluentemente na escrita. Sobre esta questão da linguagem e pensamento, sei que há fatores importantes, mas ainda não definitivamente decisivos, para justificar a relação de subordinação entre linguagem e pensamento.
Com respeito à generalização que as pesquisas na área surdez costumam fazer, estou de acordo que não se pode fazê-la não somente com os surdos senão com todos os seres humanos, quaisquer que sejam suas causas.
Sobre minha linha de pensamento, baseio minhas influências em L. S. Vygotsky (intermediação dos processos mentais superiores através das relações sociais), A. Luria e, fundamentalmente, na lingüística que envolve as regras da análise do discurso e o pragmatismo, a partir das valiosas contribuições da lingüista argentina Patricia Salas, ela própria surda oralizada.
Antes disso, fazia bastante tempo que tinha iniciado um breve mas sério estudo de alguns dos trabalhos à la Michel Foucault, referente às relações entre sujeito e poder, em que os seguidores do ex-fonoaudiólogo Carlos Skliar "transcenderam" as abordagens de Foucault para a questão dos sujeitos surdos, estudando as regras do discurso em língua de sinais. Por exemplo, como seriam as relações de sujeito e poder quando essas relações se dão em língua de sinais ?
Sobre a natureza da aquisição da linguagem, de certa forma sou adepta da linha que a considera inata, mas também creio que geneticamente trazemos informação sintática em nossa forma de comunicação e, por conseguinte, em nossa linguagem, embora eu não me contente com a simples postura chomskyana de considerar a linguagem independentemente do seu uso, porque não existe língua alguma se não há o seu uso como processo de aquisição cultural.
Neste sentido, concordo com a postura vygotskyana de que o uso da linguagem envolve a intermediação dos processos mentais superiores, ou seja, a linguagem não se adquire, mas sim se desenvolve por meio das interações entre seres humanos, que é a que põe em funcionamento toda a sintaxe que trazemos, e essa regra vale tanto para surdos quanto para ouvintes. No caso da maioria dos surdos, dentro da concepção do oralismo, esta sintaxe não se realiza de forma natural porque não há interação na língua oral. E lamentavelmente, de uma forma geral, a educação oralista por muito tempo não tem feito nada nesse aspecto.
Ensinam os surdos a falar com a idéia errônea de que quanto mais estruturas sintáticas tiverem, melhor falariam. Pois bem, o fracasso estava nos surdos aprenderem a falar todas essas estruturas sintáticas, mas quando deviam usá-las, faziam isso sem espontaneidade alguma, sem a capacidade de criar e recriar a linguagem de acordo com os diferentes momentos. Os surdos simplesmente repetiam estruturas memorizadas. Então, penso que a base da metodologia oralista continua sendo condutivista em muitos lugares do mundo, porque, na realidade, em lugar de ensiná-los a falar, o que se fazia era ensiná-los a responder perguntas... Daí que o nível de produção lingüística tanto oral quanto escrito na maioria dos surdos serem tão deficientes.
Ademais, muitos surdos desenvolvem com maior facilidade a capacidade de compreensão que de produção. É porque a capacidade de produção requer condutas mais ativas. Psicologicamente, em geral muitos surdos são passivos, dependentes, respondem mais do que perguntam. Obviamente isso é produto de uma filosofia educativa que, no caso da surdez, tem feito muitos estragos. Agora, por que há aqueles surdos que, como eu, foram educados com sucesso no oralismo? Como nós nos safamos de um mau oralismo? Algumas de minhas idéias para essa pergunta, se é que me ocorrem, está no fato de que muitos de nós tivemos famílias, principalmente nossas mães, que interagiram conosco lingüisticamente.
Muitos de nós sempre estudamos em escolas regulares, compostas por pessoas ouvintes. Não é que sejamos excepcionalmente inteligentes como costumam me dizer, senão porque acabamos desenvolvendo estratégias compensatórias para podermos nos comunicar, entender, adivinhar, antecipar e, ainda que escutemos pouco ou nada, possamos também inferir muito. Esta palavra, inferir, devo à Patrícia Salas. Aliás, desde o momento em que comecei a me envolver nos estudos e informações sobre o universo da surdez, eu sempre achava um paradoxo o fato de eu possuir muitas das minhas inquietudes, dúvidas e idéias tão parecidas com as de Patrícia Salas, muito embora eu seja apenas uma estudante apaixonada por Química e não uma de um curso de Letras ou Lingüística.
Eis que uma das idéias centrais a que se propõe na intencionalidade de educar a criança surda com responsabilidade no oralismo: a inferência. Os surdos geralmente desenvolvem a capacidade para inferir contextualmente. Isso muitos sabem-no. Mas quando se trata de linguagem pura, seja oral ou escrita (onde o contexto não ajuda), aí é quando se juntam as palavras, com elas tomando formas e é aí que começam as dificuldades. O tema das inferências é pragmático, tem muito a ver com as teorias do discurso, da lingüística textual e das teorias dos atos de fala, áreas das quais não estou bem aprofundada por razões óbvias que fogem ao meu status acadêmico atual.
Há outro fator que para mim é muitíssimo importante: a inteligência emocional. É que a inteligência emocional, no meu caso, fez-me uma pessoa ousada, pois para eu me integrar com os outros é necessário que eu tenha qualidades que me permitam interagir, não ter fraqueza de dizer que não escuto e por isso pergunto de novo. Dizer que sou surda e pedir ajuda e não fazer o que muitos fazem quando preferem bloquear-se.
Muitas vezes, acontecem "situações de nervos" quando um se bloqueia e aí custa-se a entender os demais. É aí que se apresenta o problema, já que aquela pessoa faz aquilo uma vez que não se integra com os demais. Salas, por exemplo, aponta para a existência de estudos interessantes sobre como funciona a consciência no que fazemos com a aprendizagem e conseqüente superação de traumas que impedem a pessoa de ter uma mente sã e por onde tenha uma melhor predisposição para interagir.
Para finalizar, propõe-se convidar os surdos, educadores, teóricos da surdez e demais interessados a um desafio: a de superar o Oralismo enquanto método educativo. Pois se o que antes entendia-se por falar, não é mais isso o que hoje se entende. É muito mais do que apenas ver um surdo articular com uma perfeita fonética muitas orações, senão antes o de nos preocuparmos em podermos ver o surdo desenvolver sua capacidade para produzir discursos espontâneos e coerentes, e não a falar e pensar como papagaios.
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