O texto é longo e será dividido em cinco partes, mas vale a pena acompanhar.
Vinícius Gaspar Garcia
Economista e pesquisador, fanático por esportes e militante do movimento social das pessoas com deficiência.
Este texto mais longo, tem como objetivo pontuar aspectos históricos que ilustram a trajetória das pessoas com deficiência. Trata-se de uma síntese de um item da minha tese de doutorado, tendo como referência dois livros que se preocuparam com esta temática, sobre a qual não existe um aprofundamento maior: “Epopéia Ignorada – A História da Pessoa Deficiente no Mundo de Ontem e de Hoje”, escrita por Otto Marques da Silva em 1987; e “Caminhando em Silêncio – Uma introdução à trajetória das pessoas com deficiência na História do Brasil”, de Emílio Figueira, publicada em 2008.
Os títulos sugestivos desses trabalhos, realizados com um intervalo de praticamente vinte anos, revelam uma característica marcante do que foi a luta pela sobrevivência e cidadania deste grupo populacional ao longo da história: a superação da invisibilidade.
Ao propor este tema, é preciso deixar claro que o percurso histórico no qual, gradativamente, pessoas com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas foram sendo incorporadas ao tecido ou estrutura social é um processo errático, não-linear e marcado, invariavelmente, por trajetórias individuais. Não se pode visualizar um movimento contínuo e homogêneo de integração, pois os sentimentos e a maneira pela qual a sociedade enxergava as pessoas com deficiência variavam também de um país para outro num mesmo período. Durante o século XX, por exemplo, pessoas com deficiência foram submetidas a “experiências científicas” na Alemanha nazista de Hitler. Ao mesmo tempo, mutilados de guerra eram considerados heróis em países como os EUA, recebendo honrarias e tratamento em instituições do governo.
Feita essa ressalva, porém, não deixa de ser interessante acompanhar o percurso histórico das pessoas com deficiência ao longo do tempo, no intuito de observar mudanças na percepção social relativa a este grupo populacional. Nessa primeira parte, trataremos da História Mundial, deixando para uma postagem posterior este caminhar na História do Brasil.
A “Epopéia Ignorada” das pessoas com deficiência na História Mundial.
História Antiga e Medieval.
As pessoas com deficiência, via de regra, receberam dois tipos de tratamento quando se observa a História Antiga e Medieval: a rejeição e eliminação sumária, de um lado, e a proteção assistencialista e piedosa, de outro. Na Roma Antiga, tanto os nobres como os plebeus tinham permissão para sacrificar os filhos que nasciam com algum tipo de deficiência. Da mesma forma, em Esparta, os bebês e as pessoas que adquiriam alguma deficiência eram lançados ao mar ou em precipícios. Já em Atenas, influenciados por Aristóteles – que definiu a premissa jurídica até hoje aceita de que “tratar os desiguais de maneira igual constitui-se em injustiça” – os deficientes eram amparados e protegidos pela sociedade.
Silva (1987) descreve inúmeros episódios e/ou referências históricas aludindo ao contingente de pessoas com deficiência. Não cabe aqui reproduzir esta narrativa, que parte da História Antiga e termina já no final do século XX. Mas é interessante realçar alguns aspectos trabalhados por este autor na “Epopéia Ignorada” das pessoas com deficiência ao longo da História.
O primeiro deles diz respeito à constatação de que sempre existiram na História indivíduos com algum tipo de limitação física, sensorial ou cognitiva. Como afirma Silva (1987): “anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações traumáticas, doenças graves e de conseqüências incapacitantes, sejam elas de natureza transitória ou permanente, são tão antigas quanto a própria humanidade” (Silva, 1987, p. 21). Esta afirmação, que pode parecer óbvia ou desnecessária, é válida no sentido de reconhecer que nos grupos humanos, desde o mundo primitivo até os dias atuais, sempre houve pessoas que nasceram com alguma limitação ou durante a vida deixaram de andar, ouvir ou enxergar. Tragicamente, durante muitos séculos, a existência destas pessoas foi ignorada por um sentimento de indiferença e preconceito nas mais diversas sociedades e culturas; mas elas, de uma forma ou de outra, sobreviveram.
A partir de 2.500 a.C., com o aparecimento da escrita no Egito Antigo, há indicativos mais seguros quanto à existência e às formas de sobrevivência de indivíduos com deficiência. Dentre os povos da chamada História Antiga, os egípcios são aqueles cujos registros são mais remotos. Os remanescentes das múmias, os papiros e a arte dos egípcios apresentam-nos indícios muito claros não só da antiguidade de alguns “males incapacitantes”, como também das diferentes formas de tratamento que possibilitaram a vida de indivíduos com algum grau de limitação física, intelectual ou sensorial.
Silva (1987) cita, por exemplo, a Escola de Anatomia da cidade de Alexandria, que existiu no período de 300 a.C. Dela ficaram registros da medicina egípcia utilizada para o tratamento de males que afetavam os ossos e os olhos das pessoas adultas. Existem até passagens históricas que fazem referência aos cegos do Egito e ao seu trabalho em atividades artesanais. As famosas múmias do Egito, que permitiam a conservação dos corpos por muitos anos, possibilitaram o estudo dos restos mortais de faraós e nobres do Egito que apresentavam distrofias e limitações físicas, como Sipthah (séc. XIII a.C.) e Amon (séc. XI a.C.). Dada a fertilidade das terras e as diferentes possibilidades de trabalho, não é difícil imaginar alternativas para ocupação das pessoas com deficiência no Egito Antigo.
Na Grécia Antiga, particularmente em Esparta, cidade-estado cuja marca principal era o militarismo, as amputações traumáticas das mãos, braços e pernas ocorriam com freqüência no campo de batalha. Dessa forma, identifica-se facilmente um grupo de pessoas que adquiriu uma deficiência e permaneceu vivo. Por outro lado, o costume espartano de lançar crianças com deficiência em um precipício tornou-se amplamente conhecido por aqueles que estudaram este tema numa perspectiva histórica.
De acordo com registros existentes, de fato, o pai de qualquer recém-nascido das famílias conhecidas como homoio (ou seja, “os iguais”) deveria apresentar seu filho a um Conselho de Espartanos, independentemente da deficiência ou não. Se esta comissão de sábios avaliasse que o bebê era normal e forte, ele era devolvido ao pai, que tinha a obrigação de cuidá-lo até os sete anos; depois, o Estado tomava para si esta responsabilidade e dirigia a educação da criança para a arte de guerrear. No entanto, se a criança parecia “feia, disforme e franzina”, indicando algum tipo de limitação física, os anciãos ficavam com a criança e, em nome do Estado, a levavam para um local conhecido como Apothetai (que significa “depósitos”). Tratava-se de um abismo onde a criança era jogada, “pois tinham a opinião de que não era bom nem para a criança nem para a república que ela vivesse, visto que, desde o nascimento, não se mostrava bem constituída para ser forte, sã e rija durante toda a vida” (Licurgo de Plutarco apud Silva, 1987, p. 105).
Esta prática deve ser entendida, naturalmente, de acordo com a realidade histórica e social da época. É claro que hoje nos parece algo repugnante e cruel, mas na cidade-estado de Esparta, no ano de 400 a.C., tal conduta “justificava-se” para o bem da própria criança e para a sobrevivência da república, onde a maioria dos cidadãos deveria se tornar guerreiros. Em outros estratos sociais que não os homoio esse tipo de restrição não ocorria, podendo haver a sobrevivência de uma criança “defeituosa”, como no caso dos periecos, dedicados aos trabalhos da lavoura e do gado.
Diferentemente da Grécia Antiga e do Egito, no que diz respeito a pessoas com deficiência, não é fácil localizar referências precisas ao tema na Roma Antiga. Mas existem citações, textos jurídicos e mesmo obras de arte que aludem a essa população. Assim como ocorria em Esparta, o direito Romano não reconhecia a vitalidade de bebês nascidos precocemente ou com características “defeituosas”. Entretanto, o costume não se voltava, necessariamente, para a execução sumária da criança (embora isso também ocorresse). De acordo com o poder paterno vigente entre as famílias nobres romanas, havia uma alternativa para os pais: deixar as crianças nas margens dos rios ou locais sagrados, onde eventualmente pudessem ser acolhidas por famílias da plebe (escravos ou pessoas empobrecidas).
A utilização comercial de pessoas com deficiência para fins de prostituição ou entretenimento das pessoas ricas manifesta-se, talvez pela primeira vez, na Roma Antiga. Segundo o Silva (1987): “cegos, surdos, deficientes mentais, deficientes físicos e outros tipos de pessoas nascidos com má formação eram também, de quando em quando, ligados a casas comerciais, tavernas e bordéis; bem como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezes humilhantes” (Silva, 1987, p. 130). Tragicamente, esta prática repetiu-se várias vezes na história, não só em Roma.
Fonte: http://www.bengalalegal.com/
Nenhum comentário:
Postar um comentário