Ally e Ryan

Ally e Ryan

terça-feira, 18 de outubro de 2011

A gagueira é um distúrbio sensorial, motor, ou cognitivo?

Pessoas que gaguejam, como grupo, diferem dos seus pares fluentes por apresentarem, na média, uma pontuação levemente mais baixa em testes de inteligência, tanto em tarefas verbais quanto em tarefas não-verbais, e por apresentarem um certo atraso no desenvolvimento da fala (Andrews et al., 1983; Paden et al., 1999). Contudo, as desvantagens nos escores de inteligência precisam ser interpretadas cuidadosamente, haja vista que os gagos geralmente enfrentam dificuldades para se ajustar ao ambiente escolar, o que pode resultar numa defasagem de vários meses (Andrews et al., 1983). Os sintomas associados incluem atrasos nas tarefas que requerem resposta vocal (Peters et al., 1989) e também em tarefas cronometradas de habilidade bimanual relativamente complexas, como inserir uma linha no buraco de uma agulha (Vaughn and Webster, 1989), ao mesmo tempo em que muitos outros estudos sobre tempos de reação sensório-motora não produziram resultados consistentes (Andrews et al., 1983). Alterações no feedback auditivo (p.ex., retroalimentação auditiva atrasada ou com alteração de freqüência), várias outras formas de estimulação auditiva (p.ex., leitura em coro) e mudanças do ritmo da fala (p.ex., fala silabada) produzem uma redução imediata e significativa na freqüência da gagueira, o que tem suscitado suspeitas de um processamento sensório-auditivo prejudicado ou da falta de um mecanismo eficiente de sincronização interna em indivíduos gagos (Lee, 1951; Brady and Berson, 1975; Hall and Jerger, 1978; Salmelin et al., 1998). Outros grupos de pesquisa também reportaram um início atrasado ou descoordenado em padrões articulatórios complexos em indivíduos gagos (Caruso et al., 1988; van Lieshout et al., 1993). A suposição de que a gagueira poderia ser uma forma de distonia - contrações musculares involuntárias produzidas pelo SNC -, específica para a produção de linguagem (Kiziltan and Akalin, 1996), não foi corroborada por um estudo sobre excitabilidade do córtex motor (Sommer et al., 2003).

A neuroquímica, por outro lado, pode estabelecer relações entre a gagueira e desordens relacionadas a uma rede de estruturas cerebrais envolvidas no controle do movimento, os núcleos da base. Um aumento na concentração do neurotransmissor dopamina tem sido associado a distúrbios de movimento, tais como a síndrome de Tourette (Comings et al., 1996; Abwender et al., 1998), que é uma desordem neurológica caracterizada por emissões vocais e movimentos corporais involuntários e repetitivos (tiques vocais e motores). Em conformidade com essa hipótese, assim como acontece com a síndrome de Tourette, a gagueira também é suavizada com a administração de medicação antidopaminérgica, ou seja, neurolépticos como o haloperidol, a risperidona e a olanzapina (Brady, 1991; Lavid et al., 1999; Maguire et al., 2000). Ao mesmo tempo, relatos sugerem que os sintomas da gagueira são acentuados ou até mesmo surgem a partir de um tratamento que envolva medicação dopaminérgica (Koller, 1983; Anderson et al., 1999; Shahed and Jankovic, 2001). Conseqüentemente, uma hiperatividade no sistema neurotransmissor dopaminérgico tem sido correlacionada à gagueira e parece contribuir para sua manifestação. Embora os antagonistas da dopamina tenham um efeito positivo sobre a gagueira, todos eles também possuem o risco de efeitos colaterais, o que ainda os impede de serem utilizados como uma primeira linha de tratamento para a gagueira. Lições tiradas a partir de técnicas de imageamento cerebral

Dada a existência de relatos sobre gagueira adquirida após trauma cerebral (Grant et al., 1999; Ciabarra et al., 2000), é possível cogitar que a simples análise das lesões (isto é, investigar o ponto comum de todas essas lesões que levaram à gagueira) pudesse ajudar na localização de uma anormalidade específica responsável pelo problema. Infelizmente, as lesões que levam à gagueira neurogênica são difusas e não parecem seguir um padrão evidente de sobreposição. Até mesmo o contrário tem sido observado: cura da gagueira após derrame talâmico em um paciente (Muroi et al., 1999).

Em pessoas fluentes, o hemisfério esquerdo, normalmente dominante para funções lingüísticas, fica mais ativo durante tarefas que envolvam fala e linguagem. Em contrapartida, estudos pioneiros sobre lateralização através de EEG já sugeriam um padrão anormal de dominância hemisférica em gagos (Moore and Haynes, 1980). Com o advento de outras técnicas não-invasivas de imageamento cerebral, tais como a tomografia por emissão de pósitrons (PET) e a ressonância magnética funcional (fMRI), tornou-se possível visualizar a atividade cerebral de gagos e comparar os padrões obtidos àqueles de indivíduos fluentes do grupo controle. Seguindo a pista deixada por teorias consagradas que relacionavam a gagueira a um desequilíbrio na assimetria hemisférica normal (Travis, 1978; Moore and Haynes, 1980), um importante estudo baseado em PET (Fox et al., 1996) constatou uma ativação aumentada do hemisfério direito quando portadores de PDS eram solicitados a realizar uma determinada tarefa de linguagem. Outro estudo também utilizando PET (Braun et al., 1997) confirmou este resultado, mas adicionou um importante detalhe ao estudo prévio: Braun e seus parceiros de pesquisa descobriram que o hemisfério esquerdo estava mais ativo durante os momentos de produção de fala gaguejada, enquanto a ativação do hemisfério direito estava mais correlacionada aos momentos de fala fluente. Assim, os autores concluíram que a disfunção primária está localizada no hemisfério esquerdo e que a hiperativação do hemisfério direito pode não ser a causa da gagueira, mas na verdade um mecanismo compensatório. Um processo compensatório similar tem sido observado após derrames cerebrais que resultam em afasia, quando o hemisfério direito intacto tenta compensar no mínimo parcialmente a perda de função do hemisfério oposto (Weiller et al., 1995). A hiperativação do hemisfério direito durante produção de fala fluente tem sido confirmada mais recentemente por meio de fMRI (Neumann et al., 2003).

PET e fMRI têm alta resolução espacial; porém, em razão de determinarem apenas de forma indireta a taxa de atividade cerebral através do fluxo sangüíneo, a precisão de seus dados com relação ao instante exato de ocorrência do fenômeno investigado é mais limitada. A magnetoencefalografia (MEG) é um método mais apropriado quando se trata de examinar uma seqüência de respostas cerebrais de curta duração e minimamente espaçadas no tempo. Conseqüentemente, a MEG foi usada para investigar gagos e indivíduos fluentes do grupo controle durante uma tarefa de leitura de palavras isoladas (Salmelin et al., 2000). Um importante resultado obtido a partir deste estudo foi que os sujeitos gagos conseguiram ler a maioria das palavras isoladas fluentemente. Contudo, os dados mostraram também uma diferença bastante evidente entre os dois grupos: enquanto os indivíduos fluentes ativaram áreas frontais do hemisfério esquerdo relacionadas ao planejamento da linguagem antes de acionarem as áreas centrais envolvidas na execução da fala, este padrão estava ausente, ou até mesmo invertido, em gagos. Este foi o primeiro estudo a mostrar diretamente uma correlação neuronal da hipotética dificuldade de temporalização em gagos (Van Riper, 1982).

Desse modo, os estudos de neuroimagística funcional revelaram dois importantes fatos: (i) em gagos, o hemisfério direito parece estar hiperativado; e (ii) parece haver um problema de temporalização entre as regiões corticais frontal e central no hemisfério esquerdo. O último fato também se ajusta a várias outras observações que dão conta de que indivíduos gagos possuem pequenas anormalidades em tarefas de coordenação com um certo grau de complexidade, sugerindo que o problema subjacente está localizado em torno de áreas cerebrais motoras e áreas pré-motoras associadas.

Há anomalias estruturais paralelas às anomalias funcionais descritas? O primeiro estudo anatômico a investigar esta questão usou aparelhos de ressonância magnética de alta resolução que detectaram anormalidades em áreas cerebrais relacionadas às funções de fala e linguagem (áreas de Broca e Wernicke) (Foundas et al., 2001). Em adição a esses dados, os pesquisadores também relataram a presença de anomalias no padrão de girificação do cérebro. A girificação é um procedimento bastante complexo de desenvolvimento cerebral, e a ocorrência de anormalidades neste processo é um indício da presença de distúrbios do desenvolvimento.

Outro estudo recente investigou a hipótese de que uma conexão cortical deficiente poderia ser a razão subjacente às perturbações no sincronismo entre as regiões frontal e central observadas nos estudos de MEG.
 
 
Usando uma nova técnica de imageamento por ressonância magnética, a DTI (imageamento vetorial por tensor de difusão), que permite avaliar a estrutura íntima da substância branca cerebral (análise ultraestrutural de feixes nervosos), os pesquisadores depararam com uma área que exibia uma coesão nitidamente diminuída na constituição das fibras nervosas do opérculo rolândico esquerdo (Sommer et al., 2002). Esta estrutura é adjacente à representação motora primária da língua, da laringe e da faringe (Martin et al., 2001) e ao feixe arqueado inferior; ela liga áreas do córtex frontal e temporal encarregadas do processamento da linguagem, integrando-as numa espécie de sistema de linguagem têmporo-frontal responsável pela produção e percepção de palavras (Price et al., 1996). É portanto concebível admitir que uma transmissão perturbada de impulsos nervosos através das fibras que atravessam a região do opérculo rolândico inviabilize a rápida integração sensório-motora necessária para a produção de fala fluente. Esta teoria também explica a razão pela qual o padrão temporal normal de ativação entre o córtex pré-motor e o motor está dessincronizado em indivíduos gagos (Salmelin et al., 2000) e por que, como conseqüência, as áreas de linguagem do hemisfério direito tentam intervir para compensar esta deficiência (Fox et al., 1996).

Esses novos dados também fornecem uma teoria para explicar o mecanismo pelo qual as manobras comuns de indução de fluência - tais como ler em coro, cantar ou ler com o auxílio de um metrônomo - conseguem reduzir a gagueira instantaneamente. Todos esses procedimentos envolvem um sinal externo (isto é, outros leitores lendo em uníssono, a melodia da música que está sendo entoada, e o ritmo constante do metrônomo). Todos esses sinais externos alimentam o sistema de produção de fala através do córtex auditivo. É possível, portanto, que este sinal de disparo exterior alcance as áreas cerebrais centrais responsáveis pela produção da fala, contornando a desconexão frontocentral e reabilitando a sincronização dos centros de processamento cujas atividades estavam mal integradas. Em termos simples, esses estímulos externos podem ser vistos como uma espécie de marca-passo.

FONTE: Instituto Brasileiro de Fluência

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