Ally e Ryan

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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

As Cidades e a Acessibilidade.

Descrição da imagem: figura em formato retangular, sendo A primeira letra I (eu em inglês), o desenho de um coração e a palavra acessibilidade.


- Verônica Camisão.
Na última década, investimentos políticos e financeiros consideráveis têm sido feitos por governantes de inúmeras cidades visando um meio urbano mais inclusivo para toda a população. No Brasil, as iniciativas atentas a este tema também têm se multiplicado, tornando-se, em alguns casos, uma preocupação na pauta das políticas públicas.
O processo de projetar-se um meio ambiente cada vez mais abrangente e menos restritivo tem-se apresentado como uma tendência mundial moderna que se propaga, como os demais processos que conferem qualidade de vida ao ser humano. Nesse sentido, seguir os princípios de um desenho universal ou inclusivo passou a significar, intrinsecamente, buscar reconhecer e respeitar a diversidade física e sensorial entre as pessoas e as modificações pelas quais passa o nosso corpo, da infância à velhice.
Inspirados pela noção do desenho universal, passou-se a pretender atender em muitas iniciativas do poder público e nos projetos urbanos das duas últimas décadas, à maior gama possível de pessoas, planejando-se espaços e dimensões apropriados para interação, alcance e uso de produtos em geral, independentemente do tamanho, postura ou mobilidade do usuário.
Não obstante os esforços de políticos, urbanistas e administradores, dentre outros, a ideia de inclusão, na maioria dos projetos de intervenção urbana, foi ainda fragmentária e as questões relativas à acessibilidade arquitetônica e urbanística, acabam por ser tratadas de modo tópico e de forma isolada. Muitos não perceberam que o cumprimento das normas técnicas de acessibilidade é apenas o primeiro passo para se buscar alcançar esse conceito bem mais amplo de desenho universal. É inclusive comum as pessoas entenderem desenho universal como uma terminologia em código para deficiência (Harper, 1998).
Acreditamos que, para alcançar-se o resultado esperado e os benefícios advindos de um meio ambiente inclusivo, será preciso antes, entender os conflitos entre os discursos e as práticas no processo de construção de um espaço urbano inclusivo, identificando os principais atores e a abrangência de sua interferência nesse processo.
Inclusão e Desenho Universal.
Em 1992, já se considerava que mais de 50% da população brasileira era composta de idosos, pessoas obesas, pessoas com estatura excessivamente alta ou baixa (crianças incluídas), pessoas com alguma deficiência e mulheres no 8º e 9º meses de gestação (Papanek, 1992). Em 2000, o censo do IBGE, mostrou que 14,5% dos brasileiros poderiam ser considerados pessoas com pelo menos alguma deficiência. (FGV, 2003). O mesmo recenseamento projetava para 2025, um crescimento demográfico de 69%, da parcela da população com idade acima de 60 anos (Neri, 2003) e, portanto, passível de algum tipo de restrição física a médio prazo. Segundo esses dados, a maioria de nós chegará à terceira idade, e por vezes vivenciando alguma limitação física ou sensorial que poderá comprometer nossa autonomia. Essas projeções parecem reforçar a ideia de que o investimento em acessibilidade se reverterá em garantia de maior independência para alguns e em algum benefício para todos.
Ora, estes números parecem indicar que o desenho do meio construído deve continuar a merecer atenção ainda maior dos urbanistas pelo seu “poder” facilitador ou inibidor de inclusão social. E não se pode negar a vocação do desenho da “boa forma da cidade” como elemento de integração e sua capacidade de propiciar, democraticamente, que os espaços urbanos sejam usufruídos sem restrições.
Embora no cotidiano não se leve em consideração, o meio ambiente pode reforçar uma deficiência ou diminuir sua importância. Sob o enfoque do desenho universal, o projeto busca conferir suporte para a inclusão e a participação plena das pessoas em todos os aspectos da vida comunitária, e nos mostra o quanto a sua concepção pode interferir socialmente.
Observa-se que, do ponto de vista econômico e social, é de interesse do Estado o incentivo à eliminação de barreiras arquitetônicas e a construção de um meio ambiente integrador, que facilite o desenvolvimento e produtividade de todo indivíduo. Apesar do número significativo de pessoas com alguma deficiência - conforme observamos - as iniciativas para atenção a esses grupos na América Latina, muitas vezes se limitam a soluções pontuais de acessibilidade, ou seja, soluções apenas para situações específicas.
Vemos, ainda hoje, iniciativas para fazer acessível, por exemplo, apenas uma única avenida, aonde se localiza uma clínica de reabilitação, permanecendo o restante da cidade, inacessível. Assim, torna-se evidente a necessidade de considerar a acessibilidade no planejamento macro, como um elemento habitual de todo projeto urbanístico.
No entanto, parece-nos rara a compatibilização eficiente entre as demandas geradas para realização do espaço urbano acessível e o atendimento às especificidades dos demais projetos. Inúmeros são os atores que protagonizam e interferem na gestão para um meio ambiente inclusivo: políticos, administradores, economistas, urbanistas, paisagistas, empreiteiros, fiscais, profissionais das empresas concessionárias de serviços públicos. Some-se a estes a ação de técnicos em tráfego, associações de moradores, associações de pessoas com deficiência, mídia, e outros grupos, o que gera conflitos, tensões e impasses nesse complexo processo de construção.
Acrescentamos a isto a observação de que, quando os critérios para um desenho universal não estão inseridos desde a fase de planejamento no processo de produção projetual, geralmente o resultado requer uma reavaliação e reparos, que agregam custos e comprometem a integridade do projeto.
Pelo que temos observado em várias experiências realizadas no Brasil e inclusive dentre aquelas em que participamos visando a incorporação do conceito de acessibilidade ampla, essa incompreensão também pode ser notada e tem interferido na qualidade de grande parte das intervenções.
Assim, consideramos que, aliada ao conhecimento técnico, deve haver gestão interdisciplinar na implantação dos projetos. Como observamos, os inúmeros fatores de interferência numa iniciativa visando acessibilidade ampla & desenho universal em áreas urbanas, transformam seu processo num complexo quebra-cabeças.
Urbanismo Inclusivo.
No processo de inserção de acessibilidade ampla na execução de projetos de urbanização, renovação urbana e transporte público, dentre outros, deve-se estimular a incorporação do conceito de desenho universal de forma transversal e coerente com os temas globais dos projetos de desenvolvimento.
Na preparação de um projeto, é importante destacar as recomendações específicas para seu desenho e manutenção e de classificação das prioridades nas etapas, buscando a qualidade das soluções:
1. Levantamento - Deve-se proceder ao levantamento detalhado da área a ser estudada, através de trabalho de campo. Todos os elementos pré-existentes devem ser assinalados com precisão.
2.
·  Diagnóstico - A primeira etapa de execução do projeto sobre mobilidade urbana deve ser a análise da área a ser estudada, apoiada nas especificações e recomendações das normas técnicas vigentes, locais e regionais, sobre acessibilidade.
3. Rede de percursos acessíveis - Em adaptações para tornar-se uma área urbana acessível, é importante definir itinerários que assegurem percursos ininterruptos, sem barreiras, integrando as áreas prioritárias a serem utilizadas.
Na análise de um espaço urbano, por exemplo, deve-se examinar os itinerários que interligam avenidas principais, ruas secundárias, paradas e acessos aos transportes públicos e estacionamentos de veículos. Dentre outros itens, devem ser analisados com especial atenção:
·         pavimentação.
·         desníveis.
·         largura e declividade dos passeios.
·         localização e acesso ao mobiliário urbano.
·         elementos que avancem sobre a área de pedestres.
·         sinalização visual e informativa.
·         semáforos e sinais sonoros.
·         vagas em estacionamentos públicos.
·         situação de acesso, deslocamento e interação aos equipamentos em parques e praças.
4. Compatibilização dos projetos - o planejamento e disposição do equipamento urbano (tais como sinalização, telefones públicos, quiosques, semáforos, iluminação, lixeiras, bancos, etc.) devem ser feitos de forma integral e atendendo à acessibilidade. Isto implica numa coordenação detalhada entre os diferentes elementos dos projetos, que devem ser executados sempre a partir de um plano urbanístico único, incorporando todos os elementos do mobiliário urbano.
5. Normas técnicas - Devem ser aplicadas as normas técnicas referentes à acessibilidade, nos projetos de arquitetura, urbanismo e transporte, assim como no planejamento de equipamentos, acessórios, comunicações e serviços. No Brasil, recentemente passamos a contar com importantes instrumentos para o implemento da acessibilidade em geral e em relação ao urbanismo inclusivo.
O Decreto Federal Nº 5.296, de 02 de dezembro de 2004, engloba um conjunto bastante completo de determinações para um meio físico acessível, e tornou obrigatória a observância das normas de Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos - NBR 9050, da ABNT-Associação Brasileira de Normas Técnicas. Estas normas, em continuada revisão, são a mais importante fonte de consulta técnica sobre o tema do Desenho Inclusivo no país.
Mais recentemente e em nível global, contamos com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pela ONU, e que vigora internacionalmente a partir de 03 de maio de 2008. Nesse extenso documento, há inúmeras menções à incorporação dos princípios do Desenho Universal em referência a diversos setores.
6. Fiscalização na execução das obras - Devido ao conhecimento relativamente recente dos temas de Desenho Universal, ressalta-se a importância da fiscalização com ênfase nesses quesitos.
7. Trabalhar em conjunto com as organizações comunitárias
- É importante trabalhar em sintonia com as organizações comunitárias locais e em especial com as associações de pessoas com deficiência e de idosos, considerando que a acessibilidade é um pré- requisito para a vida plena destas pessoas.
Gestões para Acessibilidade e as Políticas Públicas.
Parece-nos que através das experiências já implantadas para acessibilidade de vias urbanas no território nacional, muitas das questões e impasses gerados durante as etapas de projetos e de realização das obras, poderiam ser em parte compreendidos, e talvez melhor solucionados se enfocados em consonância com as demais políticas públicas implementadas nas cidades brasileiras.
Por exemplo, ao analisarmos os resultados ou a conservação da maioria das remodelações realizadas para acessibilidade de vias públicas. Vêem-se casos em que, mesmo antes do término das obras de reurbanização, alguns dos estabelecimentos comerciais das ruas reformadas, já ocupavam com mesas e equipamentos as áreas executadas para uso como faixa livre de pedestres e cuja intenção seria a de garantir um percurso livre nas calçadas.
Também se constata frequentemente o estacionamento de motocicletas sobre as calçadas, bem como sua ocupação por vendedores ambulantes, imediatamente após o encerramento das obras para acessibilidade. Consideramos, portanto, que a fiscalização continuada visando o cumprimento da legislação referente a essas questões, deve constituir parte integrante de qualquer processo para eliminação de barreiras urbanísticas.
A acessibilidade está sujeita a dinâmicas e modificações incessantes. Qualquer sítio tornado acessível não pode ser considerado definitivamente como tal, uma vez que há inúmeros fatores externos que interferem indefinidamente e, portanto, devem ser avaliados constantemente.
Para garantia de que as adaptações e equipamentos instalados durante um empreendimento visando a acessibilidade permaneçam íntegros e eficientes, torna-se necessário estruturar um sistema de manutenção continuado. De outra parte, para se facilitar essa conservação, especialmente no caso de vias públicas, há que se estimular a cooperação popular, através de conscientização e educação.
Uma campanha de divulgação bem conduzida torna-se uma importante ferramenta para que as pessoas vizinhas à área remodelada entendam o objetivo das obras e tornem-se solidárias à sua execução. Afinal, serão esses os mais afetados pelo incômodo gerado pelas reformas e também os mais beneficiados posteriormente.
À medida que os moradores incorporem o porquê das intervenções urbanas e atentem ao seu próprio direito às calçadas livres, passam, eles mesmos, a exercer a vigilância dessas áreas. Da mesma forma, também no trânsito, além da fiscalização, é a conscientização que pode impedir o estacionamento em frente à rampa de pedestres ou na vaga especial para pessoas com deficiência.

Referências Bibliográficas:

1.    Alvarez, Eduardo e Camisão, Verônica. Guia Operativa Sobre Accesibilidad - BID- Banco Interamericano de Desenvolvimento, Washington, 2005.

2.    Harper, Leon (1999). Report on Meeting on Universal Design. National Endowment for the Arts. NY

3.    Lynch, Kevin (1981). A Boa Forma da Cidade. MIT. Edições 70. Lisboa. 440 p

4.    Mace, Ron (1998). Proceedings of the I International Conference on Universal Design, Hofstra University, NY USA

5.    Neri, Marcelo (2003). Mapa da Exclusão Digital. Centro de Políticas Sociais. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro. CD ROM.

6.    Papanek, Victor ( 1985) Design for the Real World: Human Ecology and Social Change . London. Thames and Hudson.

7.    Sassaki, Romeu Kazumi (1993). Informe Especial. In: Revista Integração. Ed. 22. São Paulo.

Do livro: Celebrando a Diversidade. Pessoas com Deficiência e Direito à Inclusão.
Edição 2010.
Organização: Flavia Boni Licht e Nubia Silveira.
Apoio:
Planeta Educação - em especial, Elisete Oliveira Santos Baruel e Érika de Souza Bueno.
Capítulo X - Pelo Uso dos Espaços.
Artigo: As Cidades e a Acessibilidade.
Autora: Verônica Camisão - Rio de Janeiro.
arquiteta, consultora da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, do Instituto Interamericano de Deficiência e Desenvolvimento Inclusivo e do Centro de Vida Independente do Rio de Janeiro;
representante do Brasil no ICTA/América Latina e na Rehabilitation International; integrante do Grupo Técnico de Acessibilidade do Real Patronato da Espanha.

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