Ally e Ryan

Ally e Ryan

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Mara Gabrilli - foi entrevistada pela Revista Veja

"Não desisto de ser otimista"
Tetraplégica há dezesseis anos, a vereadora paulistana não se vê como vítima. Ela trava batalhas diárias para conseguir viver o básico – e para ir sempre além dele
Anna Paula Buchalla

Mara Gabrilli tinha 26 anos quando sofreu um acidente de carro que a deixou tetraplégica. Passou cinco meses internada ("meses eternos", segundo ela) – dois deles respirando com a ajuda de aparelhos. Nunca mais moveu um músculo do pescoço para baixo. Faltam-lhe os movimentos do corpo, mas sobra-lhe inquietude. Aos 42 anos, Mara é uma máquina de buscar soluções, ter ideias e fazê-las acontecer. Desde o acidente, passou a pesquisar tudo o que diz respeito a lesões medulares, envolveu-se na causa dos portadores de deficiência e fundou uma ONG de apoio a pesquisas e atletas com deficiência. Foi a primeira titular da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de São Paulo, em 2005. "Eu me sentia cada vez mais impotente para o tipo de reclamação que ouvia dos portadores de deficiência. Chegou uma hora em que me vi compelida a entrar na vida política", disse Mara, que concedeu esta entrevista a VEJA:

Há dezesseis anos, a senhora sofreu um acidente de carro que a deixou tetraplégica. Como é a vida sobre uma cadeira de rodas?

Não seria honesto de minha parte dizer que sou uma pessoa muito melhor hoje por causa do acidente, ou que tenha sido algo inteiramente positivo. Mas posso dizer com total clareza de espírito que esse acontecimento trágico me deu a oportunidade de deixar de ser ansiosa, por exemplo. Eu sofria de ansiedade extrema e tentei de tudo para me apaziguar – até acupuntura fiz para aliviar a barra. Fumava maços e maços por dia, fazia um monte de coisas ao mesmo tempo e nada me causava satisfação. Ao sair de uma sessão de acupuntura, lembro-me de pegar um cigarro, abrir a janela do carro, tirar o acendedor do painel e, em vez de acender o cigarro, pressioná-lo contra o rádio – que queimou, é claro. Isso dá uma ideia de como eu vivia. Recentemente, ao contar essa história a uma amiga, ela me perguntou o que eu havia feito para melhorar. "Quebrei o pescoço", brinquei. Mas a verdade é que o acidente estendeu o meu tempo e a minha disposição para refletir e relaxar. Nesse sentido, às vezes tenho até um sentimento de gratidão.

Como foram os primeiros meses depois do acidente?

Nos dias imediatamente seguintes, eu me sentia apenas um par de olhos. Acordei entubada e com uma "coroa de Cristo" sobre a cabeça. Trata-se de um aro de ferro que se encaixa em quatro pontos da cabeça, como se estivesse aparafusado. Ainda tenho as marcas dele na testa. Sobre o aro, há pesos que forçam a coluna a se manter reta. É um equipamento que se assemelha a um aparelho de tortura da Idade Média. Eu o usei durante três dias. Depois de dois meses de hospital, passei a me sentir um par de ombros. Era uma sensação aflitiva: tinha medo de cair de mim. Parecia estar no parapeito de uma janela alta, na iminência de uma queda. Com o passar do tempo, fui recuperando a consciência do meu corpo. Mais do que isso, aprendi a conhecê-lo de outra forma. É um exercício diário fazer com que ele se comunique comigo.

A senhora poderia descrever seu cotidiano de exercícios fisioterápicos?

Tenho uma rotina puxada, planejada semanalmente, de acordo com a minha agenda de trabalho. Aos sábados e domingos, quando tenho mais tempo, o treino é mais intenso. Faço, entre outras atividades, um tipo de bicicleta que me permite pedalar com a força dos meus músculos. Isso é possível graças a eletrodos colocados nas minhas pernas. Eles emitem estímulos que fazem com que os músculos se contraiam e distendam. Não é o meu cérebro que manda a informação de executar os movimentos, e sim o meu corpo que trabalha de forma autônoma, por assim dizer. É dessa forma que mantenho a musculatura tonificada e reforço o sistema cardiorrespiratório. Quando comecei a treinar, em 1997, pedalava durante três minutos, no máximo, porque cansava logo. Hoje, chego a fazer dez minutos de bicicleta com 3 quilos de peso. Deliro de alegria cada vez que consigo uma melhora.

Como foi a experiência de se reapresentar aos amigos e conhecidos como portadora de deficiência?

As reações deles foram exacerbadas. Alguns amigos se afastaram para sempre, porque não conseguiram conviver com a minha situação. Outros exageravam na companhia e achavam que não podiam me largar um minuto sequer. Na minha primeira ida ao cinema, cinco meses depois do acidente, encontrei um grande amigo do período de escola, que não via fazia dez anos. Ao deparar comigo na cadeira de rodas, 15 quilos mais magra e com o cabelo raspado, ele perguntou se estava tudo bem. Antes que eu respondesse, porém, disparou a falar de si. Fez isso por dez minutos ininterruptos e despediu-se rapidamente a pretexto de não perder o filme. Foi então que, para evitar constrangimentos mútuos, eu passei a tomar a iniciativa de, a cada encontro, ir logo contando que havia quebrado o pescoço. O curioso é que eu mesma não estava sempre triste. É claro que tive momentos em que sentia um vazio enorme... Mas, nessas horas, na maioria das vezes, eu estava sozinha. Ficar presa a uma cadeira de rodas, no início, significa perder os parâmetros da própria existência. Significa ter de se reeducar emocionalmente em vários aspectos. Ao final, aprendi que, não importa a condição física, cada um é responsável pela construção de sua própria felicidade.

Depois do acidente, a senhora chegou a pensar que talvez não valesse a pena viver?

Nunca. Fui apaixonada por um cadeirante, antes de me acidentar, e também cuidei de uma menina tetraplégica, no período em que vivi na Itália. Eu pensava que, se estivesse no lugar deles, preferiria morrer. Depois que fiquei presa a uma cadeira de rodas, no entanto, jamais cogitei me matar. A minha conclusão é que só conhecemos os nossos próprios limites quando nos defrontamos diretamente com eles.

O acidente deixou sequelas emocionais insuperáveis?

Passados todos esses anos, posso dizer que, dentro do possível, superei a tragédia que se abateu sobre mim. O acidente significou a maior mudança da minha vida, mas não a maior dor. Ele não diminuiu vivências intensas e pungentes da minha adolescência, por exemplo, que considero muito mais determinantes para a formação da minha personalidade. Já o meu namorado na ocasião, que dirigia o carro e que saiu da capotagem sem nem mesmo um arranhão, carrega uma ferida emocional grande até hoje. Eu me vi várias vezes na situação de ter de animá-lo, consolá-lo, de tentar fazer com que se sentisse melhor. Um dia, ele me disse: "Sabe o que sinto? Que fiquei paraplégico na alma, e isso é irreversível".

A senhora precisa de alguém a seu lado 24 horas por dia. Perder a privacidade não a incomoda?

Encaro como uma forma de ter autonomia. Pouquíssimas pessoas na minha condição – que não conseguem mexer um único músculo do pescoço para baixo – podem ter um auxiliar à sua disposição durante todo o dia. Alguns paraplégicos e tetraplégicos passam a suar demais em partes específicas do corpo, porque o comando da regulação da temperatura do corpo fica localizado na medula, a área mais afetada em acidentes como o que sofri. No meu caso, não suo quase nada – o pouco calor que elimino sai pelas narinas. Mas preciso de alguém que as seque para mim. Meus braços também precisam ser massageados de hora em hora, porque ficam quase sempre na mesma posição. Apesar de não mover braços nem mãos, tento inserir movimentos, ainda que feitos por intermédio de outra pessoa, na minha rotina. Na hora de comer, não me contento em ser alimentada na boca. Gosto de segurar o talher que será levado até ela. Tomo banho de banheira e procuro lavar o corpo com as minhas mãos guiadas pela auxiliar. Essa foi a maneira que encontrei de entrar em contato com um corpo que ainda é meu.

A senhora sente algum tipo de preconceito em relação à sua condição?

Não diria preconceito, mas despreparo. Vou dar o exemplo de uma situação vivida pela minha amiga Leide Moreira, advogada e poeta, que sofre de esclerose lateral amiotrófica. Ela só conservou o movimento dos olhos, e é com eles que se comunica. Recentemente, fomos juntas a um show de Ney Matogrosso, cantor que ela adora. Como está ligada permanentemente a um aparelho que a ajuda a respirar, ela é transportada em uma maca. A casa de shows lhe cobrou quatro ingressos, alegando que ela ocuparia o espaço de uma mesa. Isso é absolutamente injusto. Mais um pouco e fazem o mesmo com cadeirantes ou obesos. Será que o gerente da casa imaginou que, ao abrir uma exceção, uma fila de macas se formaria à porta?

Qual sua opinião sobre a abordagem da tetraplegia na novela das 8 da Rede Globo?

Costumo brincar que, todas as noites, entra uma tetraplégica na casa da maioria dos brasileiros. Isso contribui para ampliar a reflexão. Vivem me perguntando, por exemplo, se não é uma licença ficcional a tetraplégica interpretada pela atriz Alinne Moraes mexer os braços. De fato, não é. A personagem Luciana é baseada no caso de uma amiga minha: ela é tetraplégica, mas consegue movimentar um pouco os braços. Tudo depende da vértebra que foi fraturada. A personagem criada pelo autor Manoel Carlos é uma menina rica, que sofreu um acidente e dispõe das melhores condições para enfrentar seus novos limites. Isso também é real. Recebo mensagens pelo Twitter de pessoas que questionam como seria se ela morasse na Rocinha. Respondo que, nesse caso, talvez ela não conseguisse sair da favela, mas seria uma situação tão verdadeira quanto a de quem tem acesso a uma vida com conforto.

Como a sua, por exemplo.

Sim. Sei bem a diferença que faz ter uma cadeira de 15 800 reais e uma almofada de 1 500 reais. Trata-se de um privilégio. Minha cadeira, por exemplo, fica em pé quando eu preciso. É bom porque consigo fazer xixi em pé. Como é difícil encontrar banheiros acessíveis a portadores de deficiência, com ela posso usar qualquer um.

A senhora sente dor?

Desde que quebrei o pescoço, as dores passaram a ser difusas. Por exemplo, se levo uma topada, eu a sinto, mas não consigo reconhecer a parte do corpo atingida. Recentemente, estava fazendo exercícios em uma máquina que me permite caminhar. Senti um desconforto e achei que era vontade de ir ao banheiro. Na verdade, o equipamento estava esfolando meus tornozelos, sem que eu percebesse.

Como é a sua vida amorosa?

Uma das primeiras perguntas que fiz ao médico, ainda na UTI, foi justamente o que aconteceria com minha vida sexual. Houve uma adaptação, é claro, mas não acho de forma nenhuma que a cadeira me limite. Quer saber? Ela faz até uma boa pré-seleção. Namorei durante sete anos e terminei no fim do ano passado. A minha vida sexual não é tão diferente assim. A intensidade da sensação não muda. O que muda é a maneira de sentir.

Quando sonha, a senhora se vê caminhando ou em uma cadeira de rodas?

A cadeira nunca está em meus sonhos, mas neles há a sensação de que algo em mim me segura.

Ao saber que um grupo de pesquisadores brasileiros estudava a injeção de células-tronco para a recuperação de lesões medulares, a senhora aderiu à experiência. Os resultados foram positivos?

Fiz autoimplante de células-tronco adultas, retiradas da minha medula óssea e introduzidas no local da lesão. Trinta pacientes fizeram esse tipo de autoimplante. Dezesseis tiveram uma melhora de sensibilidade. Mas só dois deles apresentaram maior evolução – eu e mais um. O que nos diferenciou do resto do grupo foi o fato de que ambos fazíamos exercícios físicos todos os dias. O médico que liderou o estudo não ficou entusiasmado com os resultados. Por via das dúvidas, todos os participantes tiveram amostras de seu sangue congeladas, para o caso de algum dia a pesquisa prosperar. Hoje, não faço tratamento nenhum. Só ginástica. Mas leio muito a respeito dos avanços nas pesquisas sobre lesões medulares. Acredito que tudo conspira a favor da reabilitação total. Eu não desisto de ser otimista.

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