A Educação Inclusiva e os obstáculos a serem transpostos
Publicado no Jornal dos Professores – órgão do Centro do Professorado Paulista.
Ano XXXVIII – fevereiro de 2003 - nº 343, p. 15.
Nesta entrevista, com o consultor de Educação Inclusiva, Romeu Kazumi Sassaki, o Jornal dos Professores mostra que existe muito trabalho a ser feito no campo da Educação Especial, no Brasil, e que o processo de inclusão ainda enfrenta sérios obstáculos. O medo e o preconceito são as principais barreiras a serem transpostas. Romeu Sassaki é graduado em serviço social, com especialização em aconselhamento de reabilitação, emprego apoiado e educação inclusiva, e trabalha há 42 anos na mudança do sistema educacional e outros setores para que incluam pessoas com deficiências. Tem dezenas de artigos publicados e é autor do livro “Inclusão: Construindo uma sociedade para todos” – Rio de Janeiro: WVA, 1997.
Por Maria Alice Bicudo Soares
JP - O que é educação inclusiva?
Romeu – Educação inclusiva é o conjunto de princípios e procedimentos implementados pelos sistemas de ensino para adequar a realidade das escolas à realidade do alunado que, por sua vez, deve representar toda a diversidade humana. Nenhum tipo de aluno poderá ser rejeitado pelas escolas. As escolas passam a ser chamadas inclusivas no momento em que decidem aprender com os alunos o que deve ser eliminado, modificado, substituído ou acrescentado nas seis áreas de acessibilidade, a fim de que cada aluno possa aprender pelo seu estilo de aprendizagem e com o uso de todas as suas múltiplas inteligências. As seis áreas de acessibilidade são: arquitetônica (desobstrução de barreiras ambientais), atitudinal (prevenção e eliminação de preconceitos, estigmas, estereótipos, discriminações), comunicacional (adequação de códigos e sinais às necessidades especiais), metodológica (adequação de técnicas, teorias, abordagens, métodos), instrumental (adaptação de materiais, aparelhos, equipamentos, utensílios, tecnologias assistivas) e programática (eliminação de barreiras invisíveis existentes nas políticas, normas, portarias, leis e outros instrumentos afins).
JP - Qual a diferença entre inclusão escolar e integração escolar?
Romeu – A inclusão escolar é o processo de adequação da escola para que todos os alunos possam receber uma educação de qualidade, cada um a partir da realidade com que ele chega à escola, independentemente de raça, etnia, gênero, situação socioeconômica, deficiências etc. É a escola que deve ser capaz de acolher todo tipo de aluno e de lhe oferecer educação de qualidade, ou seja, respostas educativas compatíveis com as suas habilidades, necessidades e expectativas. A integração escolar é o processo tradicional de adequação do aluno às estruturas física, administrativa, curricular, pedagógica e política da escola. A integração trabalha com o pressuposto de que o aluno precisa ser capaz de aprender no nível pré-estabelecido pelo sistema de ensino. No caso de alunos com deficiência (intelectual, auditiva, visual, física ou múltipla), a escola comum condicionava a sua aceitação a uma certa prontidão que somente as escolas especiais (e, em alguns casos, as classes especiais) poderiam conseguir. E mesmo aceitos sob esta condição, estes alunos ficavam sujeitos a ser devolvidos às classes/escolas especiais se mais tarde viessem a apresentar dificuldades de aprendizagem e/ou de relacionamento.
JP - Existe diferença entre as expressões “aluno com deficiência” e “aluno com necessidades especiais”?
Romeu – Muita diferença. O termo ‘necessidades especiais’ não substitui a palavra ‘deficiência’, como se imagina. A maioria das pessoas com deficiência pode apresentar necessidades especiais (na escola, no trabalho, no transporte etc.), mas nem todas as pessoas com necessidades especiais têm deficiência. As necessidades especiais são decorrentes de condições atípicas como, por exemplo: deficiências, insuficiências orgânicas, transtornos mentais, altas habilidades, experiências de vida marcantes etc. Estas condições podem ser agravadas e/ou resultantes de situações socialmente excludentes (trabalho infantil, prostituição, pobreza ou miséria, desnutrição, saneamento básico precário, abuso sexual, falta de estímulo do ambiente e de escolaridade). Na integração escolar, os alunos com deficiência eram o foco da atenção. Na inclusão escolar, o foco se amplia para os alunos com necessidades especiais (dos quais alguns têm deficiência), já que a inclusão traz para dentro da escola toda a diversidade humana.
JP - Onde se encontram as principais resistências no sentido de se conseguir uma efetiva inclusão?
Romeu - As resistências são de todos os integrantes da comunidade escolar: professores, pais, alunos, profissionais liberais e funcionários. Assim como há pais que hesitam em permitir que seus filhos com deficiência estudem em escolas comuns, existem pais que temem a convivência de seus filhos não-deficientes com colegas que tenham deficiência ou síndrome. E assim por diante. A solução é a criação de ambientes inclusivos onde todos aprendem a conviver com as diferenças e passam a respeitar uns aos outros. A nova escola é aquela que vai substituindo velhos paradigmas por novos paradigmas, construindo junto com todos os alunos uma nova maneira de pensar e de viver a educação. As resistências podem existir também entre alguns políticos, governantes, autoridades educacionais e outras figuras influentes de uma sociedade.
JP - Como o senhor vê a questão do preconceito e como derrubar as barreiras que ele estabelece?
Romeu – O preconceito pode ser evitado (as crianças não o desenvolvem) e eliminado (quando as crianças já o trazem), através da convivência e do debate aberto (informação correta), como já acontece nas centenas de escolas inclusivas de, por exemplo, Goiás, Minas Gerais e Paraná, onde tenho atuado como consultor. Na Declaração de Salamanca, ficou registrado que: “Cremos e proclamamos que (...) as escolas comuns com esta orientação inclusiva são o meio mais eficaz de combater atitudes discriminatórias, criando comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e conseguindo educação para todos; além do mais, elas oferecem uma educação eficaz para a maioria das crianças e melhora a eficiência e em última análise o custo-benefício de todo o sistema educacional.(§2, p.ix)”
JP - Quais as vantagens e desvantagens para um aluno sem deficiência estudar na mesma sala, ao lado de crianças deficientes?
Romeu – As vantagens são para todos. As escolas inclusivas de Goiás comprovam na prática o que em 1994 dizia o Programa da ONU em Deficiências Severas.
Os estudantes com deficiência:
• desenvolvem a apreciação pela diversidade individual;
• adquirem experiência direta com a variação natural das capacidades humanas;
• demonstram crescente responsabilidade e melhorada aprendizagem através do ensino entre os alunos;
• estão melhor preparados para a vida adulta em uma sociedade diversificada através da educação em salas de aula diversificadas;
• frequentemente recebem apoio acadêmico adicional da parte do pessoal de educação especial;
• podem participar como aprendizes sob condições instrucionais diversificadas (aprendizado cooperativo, uso de tecnologia baseada em centros de aprendizagem etc.)
E os estudantes sem deficiência:
• têm acesso a uma gama mais ampla de modelos de papel social, atividades de aprendizagem e redes sociais;
• desenvolvem, em escala crescente, o conforto, a confiança e a compreensão da diversidade individual deles e de outras pessoas;
• demonstram crescente responsabilidade e crescente aprendizagem através do ensino entre os alunos;
• estão melhor preparados para a vida adulta em uma sociedade diversificada através da educação em salas de aula diversificadas;
• recebem apoio instrucional adicional da parte do pessoal da educação comum;
• beneficiam-se da aprendizagem sob condições instrucionais diversificadas.
JP - Que ações o senhor sugere para tornar realmente eficaz a inclusão do aluno com deficiência na escola comum, principalmente na rede pública, e para transformar uma escola comum em uma escola inclusiva?
Romeu – Recomendo o que tem sido feito em outros estados (Goiás, por exemplo) e municípios brasileiros: planejamento, sensibilização, implantação, expansão e consolidação dos princípios da educação inclusiva. O art. 8, inciso I, da Resolução CNE/CBE número 2, diz que “As escolas da rede regular de ensino devem prever e prover na organização de suas classes comuns: professores das classes comuns e da educação especial capacitados e especializados, respectivamente, para o atendimento às necessidades educacionais dos alunos”. A Resolução CNE/CBE número 2, em seu todo, estabelece as diretrizes para garantir a estrutura das escolas inclusivas. Essa Resolução e o Parecer CNE/CEB número 17/2001 se inspiraram fortemente na Declaração de Salamanca (1994), quando diz que “Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às escolas organizar-se para o atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para uma educação de qualidade para todos.” (art. 2º). E o art. 7º determina que “o atendimento aos alunos com necessidades educacionais especiais deve ser realizado em classes comuns do ensino regular, em qualquer etapa ou modalidade da Educação Básica.”
JP - Aos alunos surdos deve ser garantido o acesso à língua de sinais, sem prejuízo do aprendizado da Língua Portuguesa. Aos cegos, o acesso ao braile, como um código de sinais diferenciado para a leitura e escrita. Como incluir os alunos com estes tipos de deficiência em classes comuns?
Romeu – Em Goiás, alunos surdos e alunos cegos também estudam em salas de aula inclusivas, como os demais alunos. Em todas as classes onde estudam um ou mais alunos surdos, a escola colocou um intérprete da Língua de Sinais Brasileira (Libras). E todos os alunos ouvintes também aprendem Libras, assim podendo comunicar-se, estudar e brincar com os colegas surdos. Foram ministrados 29 cursos completos de Libras e 5 cursos de braile e sorobã em todas as Subsecretarias Regionais de Educação, de modo que nenhum aluno surdo ou cego está sem o apoio adicional exigido pela Declaração de Salamanca, que determina que “as crianças com necessidades educacionais especiais devem receber todo apoio adicional necessário para garantir uma educação eficaz (§8)” e que “deverá ser dispensado apoio contínuo, desde a ajuda mínima nas classes comuns até a aplicação de programas complementares de apoio pedagógico na escola, ampliando-os, quando necessário, para receber a ajuda de professores especializados e de pessoal de apoio externo (§32)”. Além disso, “Os programas de estudos devem ser adaptados às necessidades da criança e não o contrário. As escolas deverão, por conseguinte, oferecer opções curriculares que se adaptem às crianças com capacidade e interesse diferentes (§28)”. Estas determinações também constam da Resolução CNE/CBE n 2.
JP - O Poder Público tem sido acusado de não haver se comprometido, de fato, com a questão da inclusão dos alunos com necessidades especiais em classes comuns. O senhor concorda com esta afirmativa? Por quê?
Romeu – Numa perspectiva histórica, posso afirmar que o Poder Público, de um modo geral, demorou a aceitar o paradigma da inclusão escolar, se não por excesso de precaução diante de um revolucionário desafio de se efetuar mudanças estruturais no sistema educacional, pelo menos por força da acomodação ao velho paradigma da integração escolar. Não foi o caso do governo de Goiás que, desde o início do mandato, decidiu implantar escolas inclusivas. Hoje, o Poder Público em todos os estados está em intensa movimentação para, finalmente, cumprir o seu papel diante do direito de aprender dos alunos dentro da diversidade humana no mesmo espaço escolar.
JP - O CPP há muito reivindica a diminuição do número de alunos por classe como forma de melhorar a qualidade do ensino. O senhor considera esta questão prioritária para que a inclusão de alunos com necessidades especiais seja uma realidade mais justa nas escolas?
Romeu – A diminuição do número de alunos por classe é um imperativo, não por causa da proposta inclusiva e sim porque uma sala de aula superlotada constitui uma violação do direito a uma educação de qualidade e também porque está comprovado que o processo ensino-aprendizagem é mais eficaz e eficiente em grupos pequenos de alunos. Historicamente, as classes numerosas surgiram pelo aumento demográfico e pela não-construção de escolas na mesma proporção desse aumento. Mais escolas devem ser construídas, porém com salas de aula que comportem, no máximo, 30 alunos. O custo de um maior número de professores necessários devido ao maior número de classes é imediatamente compensado pelos resultados positivos alcançados pelos alunos. Não devemos confundir ‘necessidades especiais’ com ‘trabalhão a mais’. É ofensivo atribuir a alunos com necessidades especiais a culpa pelas dificuldades do professor em lidar com a classe toda. É preconceituoso defender classes com menos alunos onde houver alunos com necessidades especiais, como se estes fossem exigir do professor mais atenção que os colegas não-deficientes. Hoje, com a abordagem inclusiva e a provisão das seis áreas de acessibilidade, a escola está conseguindo oferecer ensino de qualidade a todos os alunos e estes estão conseguindo aprender com alegria, autoconfiança, auto-estima elevada, sentimentos de amizade e solidariedade, senso de objetividade nas tarefas, respeito pelas diferenças individuais e pela diversidade humana e tantos outros fatores subjetivos importantes no desenvolvimento da cidadania.
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