Ally e Ryan

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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

PARADIGMAS DA RELAÇÃO DA SOCIEDADE COM AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA - parte 2

Obs: com o intuito de manter fiel ao texto, termos como "deficiente mental" não foram substituídos por "pessoa com deficiência intelectual"
Maria Salete Fábio Aranha
UNESP-Marília

No século XVI, a Revolução Burguesa, revolução de idéias, mudando o modo clerical e ver o homem e a sociedade, trouxe em seu bojo a mudança no sistema de produção: derrubada das monarquias, queda da hegemonia religiosa e uma nova forma de produção: o capitalismo mercantil. Iniciou-se a formação dos Estados modernos, com uma nova divisão social do trabalho: donos dos meios de produção e operários. Surge a burguesia, nova classe constituída por pequenos empreendedores que começaram a enriquecer a partir da venda e comercialização de seu trabalho.

Nessa época, à existência da visão abstrata, metafísica, do homem, soma-se uma nova cisão, a da concreticidade.

No que se refere à deficiência, começaram a surgir novas idéias quanto à organicidade de sua natureza, produto de infortúnios naturais, conforme Paracelso e Sir Anthony Fitz-Hebert. Assim concebida, passou a ser tratada através da alquimia, da magia e da astrologia, métodos da insipiente medicina. O primeiro hospital psiquiátrico surgiu nessa época e se proliferou, mas da mesma forma que os asilos e conventos, eram lugares para confinar, ao invés de tratar as pessoas. Tais instituições eram pouco mais do que prisões.

No século XVII, a organização sócio-econômica foi se encaminhando para o capitalismo comercial, fortalecendo o modo de produção capitalista e consolidando a classe da burguesia no poder.

Passou-se a defender, no ideário da época, a concepção de que os indivíduos não são essencialmente iguais e que se havia que respeitar as diferenças. Nisto se fundamentou a classe dominante para legitimar a desigualdade social, a prática da dominação do capital e dos privilégios. A educação, conquanto semelhante ao padrão de ensino tradicional até então assumido exclusivamente pela Igreja, passou também a ser oferecida pelo Estado, com objetivos claros de preparo da mão de obra que se mostrava necessária no ainda novo modo de produção.

Concomitantemente, novas idéias foram sendo produzidas tanto na área da medicina, como na da filosofia e na da educação.

Continuou o fortalecimento da visão organicista, voltada para a busca de identificação de causas ambientais para a deficiência. Locke, por outro lado, defendendo que o homem é uma tábula rasa a ser preenchida pela experiência, encaminhou para a crença na educabilidade do deficiente mental, com ênfase na necessidade e importância da ordenação sensorial.

A relação da sociedade com a pessoa com deficiência, a partir desse período passou a se diversificar, caracterizando-se por iniciativas de Institucionalização Total, de tratamento médico e de busca de estratégias de ensino.

Na Medicina, o século XVIII foi um período mais de assimilação e de consolidação do conhecimento já produzido, do que de grandes descobertas. Lentos avanços no conhecimento da fisiologia, da bioquímica e da patologia foram obtidos e assim, sementes foram plantadas para o desenvolvimento do campo da medicina preventiva.

A deficiência mental continuava sendo considerada hereditária e incurável e assim, a maioria das pessoas com deficiência mental eram relegadas a hospícios, albergues, asilos ou cadeias locais.

Pessoas com deficiência física “ou eram cuidadas pela família ou colocadas em asilos” (Rubin & Roessler, 1978, p. 7).

Dentre os primeiros passos dados, entretanto, na direção de mudar as características da relação da sociedade com as pessoas com deficiência, encontram-se os esforços de Jacob Rodrigues Pereira, em 1747, na tentativa de ensinar surdos congênitos a se comunicar. Tais tentativas foram tão bem sucedidas que estimulou a busca de formas para lidar com outras populações, especialmente a de pessoas com deficiência mental.

Em meados de 1800, Guggenbuhl abriu uma instituição para o cuidado e tratamento residenciais de pessoas com deficiência mental, em Abendberg, Suíça. Os resultados de seu trabalho chamaram a atenção para a necessidade de uma reforma significativa no sistema, então vigente, da simples internação em prisões e abrigos. Embora tenha deteriorado posteriormente, este foi o projeto que deu origem à idéia e à prática do cuidado institucional para pessoas com deficiência mental, inclusive no continente americano.

Da mesma forma que na Suíça, entretanto, de instituições para tratamento e educação, elas logo mudaram para instituições asilares e de custódia, ambientes segregados, denominados Instituições Totais, constituindo o primeiro paradigma formal adotado na caracterização da relação sociedade – deficiência: o Paradigma da Institucionalização.

Este caracterizou-se, desde o início, pela retirada das pessoas com deficiência de suas comunidades de origem e pela manutenção delas em instituições residenciais segregadas ou escolas especiais, freqüentemente situadas em localidades distantes de suas famílias.

Assim, pessoas com retardo mental ou outras deficiências, freqüentemente ficavam mantidas em isolamento do resto da sociedade, fosse a título de proteção, de tratamento, ou de processo educacional.

Apesar de existirem desde o século XVI, as instituições totais não foram criticamente examinadas até o início da década de 60, quando Erving Goffman publicou Asylums (tendo por título em português “Manicômios, Prisões e Conventos), que se tornou uma análise clássica das características da instituição e de seus efeitos no indivíduo. Sua definição de Instituição Total é amplamente aceita até hoje - “um lugar de residência e de trabalho, onde um grande número de pessoas, excluídos da sociedade mais ampla por um longo período de tempo, levam juntos uma vida enclausurada e formalmente administrada” (Goffman, 1962, XIII).

O referido autor argumentou que estar institucionalizado é uma experiência que afasta significativamente o indivíduo da sociedade, bem como o liga à vida institucional, constituindo um estilo de vida difícil de ser revertido.

Desde a manifestação de Goffman, em 1962, muitos autores passaram a publicar estudos que enfocavam tanto as características de uma Instituição Total, como seus efeitos no indivíduo institucionalizado. A maioria dos artigos apresentam uma dura crítica a esse sistema, no que se refere a sua inadequação e ineficiência para realizar aquilo a que seu discurso se propõe fazer: favorecer a recuperação das pessoas para a vida em sociedade.

Vail (1966), enfatizou, por exemplo, no contexto institucional, a prática de demandas irrealistas, na maioria das vezes inconsistentes com as características e exigências do mundo externo. Tal contexto torna a pessoa incapaz de enfrentar e administrar o viver em sociedade quando e se jamais sair da Instituição. Discutiu os procedimentos institucionais tais como o de admissão, sistemas de recompensa e de punição, a uniformidade de massa e a impersonalidade automatizada da interação entre os provedores de serviços e seus usuários. Pauline Morris (1969), em relatório de estudo desenvolvido na Inglaterra, com o objetivo de identificar a amplitude e a qualidade do atendimento institucional disponível para os deficientes mentais naquele país, reconheceu que embora se detectassem mudanças na filosofia do tratamento, os resultados das pesquisas “indicavam claramente que estas não eram acompanhadas por mudanças correspondentes, nos serviços disponíveis para esses pacientes” (p. 309). Os resultados obtidos indicavam a existência de condições decadentes dos prédios, o uso de roupas comunitárias, a falta de incentivo e mesmo de permissão para a manutenção de objetos pessoais, dados limitados e não fidedignos sobre os pacientes, muito pouca estimulação e treinamento, o que leva a pessoa a uma dependência infantil, o tratamento em massa, a falta de pessoal especializado, o isolamento da comunidade e a prática da criação de regras e regulamentações vindas de cima para baixo – feitas por pessoas que não se encontravam cientes das reais necessidades dos pacientes.

Além de estudos mais antigos indicarem conseqüências negativas da Institucionalização (Skeels & Dye, 1939; Kirk, 1958), Heber (1964) descreveu distúrbios de personalidade (processo de construção de doença mental) também encontrados por Rosen, Floor e Baxter (1972) em indivíduos com deficiência mental institucionalizados. Dentre os distúrbios descritos observou-se baixa auto-estima, ausência de motivação para a vida, desamparo aprendido e distúrbios sexuais.

Valerie J. Bradley, em 1978, apresentava a desinstitucionalização como um movimento que havia se iniciado, na realidade, há muito tempo, tendo envolvido passos e etapas diferentes, os quais se congregaram em seu encaminhamento:

1. A melhoria do sistema de recursos e serviços da comunidade;

2. A exigência dos consumidores pelo acesso a esses recursos e serviços;

3. O início do uso de antibióticos, que reduziu o índice de mortalidade nas instituições;

4. A resultante sobrecarga de pessoas institucionalizadas exigia que ou se construíssem novas instituições, ou se criassem novas alternativas comunitárias.

Vê-se, portanto, que o questionamento e a pressão contrária à institucionalização vinha, naquela época, de diferentes direções, determinados também por interesses diversos; primeiramente, tinha-se o interesse do sistema, ao qual custava cada vez mais manter a população institucionalizada na improdutividade e na condição de segregação; assim, interessava para o sistema político-econômico o discurso da autonomia e da produtividade; tinha-se, por outro lado, o processo geral de reflexão e de crítica (sobre direitos humanos e mais especificamente sobre o direito das minorias, sobre a liberdade sexual, os sistemas de organização político-econômica e seus efeitos na construção das sociedades e da subjetividade humana), que no momento permeava a vida nas sociedades ocidentais; somando-se a estes, tinha-se ainda a crescente manifestação de duras críticas, por parte da academia científica e de diferentes categorias profissionais, ao paradigma da Institucionalização.

Tais processos, embora diversos quanto a sua natureza e motivação vieram a convergir, determinando, em seu conjunto, a reformulação de idéias e a busca de novas práticas no trato da deficiência.

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